quinta-feira, 31 de março de 2011

Dos abismos


Era pela certeza do desencontro e pela esperança da redenção que ela tinha esse apreço pelas palavras. O simulacro de ponte da comunicação impossível. Aprendera cedo. Quantos anos ela tinha? Dois? Três anos? Quando, na creche, quisera imitar o amiguinho que, brincando, dava chutes de leve na perna da outra garota. Ainda lembrava os nomes: Flávia e Ângelo. Ele deu o primeiro chute. Flávia riu. O segundo. Ela riu novamente. O terceiro. Observando tudo aquilo, quis imitar o garoto. Ela, também, deu um chute na perna de Flávia. Um segundo. Um terceiro. E Flávia começou a chorar. Os professores acudiram, um carregou a vítima, o outro, a agressora.

- Você não pode chutar sua amiguinha - o professor explicava.

- Mas eu já pedi desculpas! - ela repetia, chorosa.

- Que bom que pediu desculpas, mas mesmo assim não pode bater.

- Mas eu já pedi desculpas!

Se ela soubesse as palavras, explicaria, não que já tinha pedido desculpas, mas que aquilo fora uma brincadeira, sem intenção de machucar. A resposta ficou engasgada e, quando ela aprendeu as palavras, já não tinha a quem se explicar. Por isso o fascínio por essas palavras que, mesmo encerrando-se no abismo da subjetividade inefável, traziam essa breve esperança da compreensão. E as folhas em branco tornaram-se tentativas de tradução. Mesmo nas estórias imaginadas, nas personagens criadas, tratava-se apenas dela, embora em linguagens outras. Bem sabia que sua verdade não residia nos fatos.

Mas agora era diferente. O escritor fazia dela personagem e tentava interpretá-la com sua própria língua. Justo ela, que não sabia viver em histórias alheias. Então ela apenas soltou a caneta e, impotente, viu-se reinventada.

quarta-feira, 30 de março de 2011

Manual de instruções - parte 1

- Se cruzar comigo na rua, primeiro me chame pelo nome, espere eu olhar e só então se aproxime. E, principalmente, NUNCA encoste em mim sem que eu te reconheça antes.

- Se ligar três vezes na mesma semana e eu não atender nem retornar, tente no ano seguinte.

- Se eu estiver de mau humor, me dê um chocolate e aguarde cinco minutos.

- Não importa o quão bom você seja em determinado jogo, nunca facilite para mim.

sexta-feira, 18 de março de 2011

Reconhecer


"Eu vou ficar esperando você numa tarde cinzenta de inverno bem no meio de uma praça, então os meus braços não vão ser suficientes para abraçar você e a minha voz vai querer dizer tanta mas tanta coisa que eu vou ficar calada um tempo enorme só olhando você sem dizer nada só olhando e pensando meu deus mas como você me dói de vez em quando" (C.F.A.)


Porque ele quebrou o pacto que ela tantas vezes quebrara e tantas outras quebraria. Então ela se enfeitou de flores, para reviver o futuro, e foi esperar naquela praça. Esperar o quê? Não sabia responder, mas sabia lá no íntimo que havia algo essencial por chegar. Aconchegou-se estrategicamente debaixo de uma macieira, pois lá teria sombra e frutos, e a espera poderia ser longa. Ela intuía que o tempo das coisas eternas não seguia calendários.

Foi numa tarde, depois de passar o tempo das coisas imensuravelmente grandes, que ele chegou. Vinha procurando, também, a sombra daquela macieira. Trazia oceano nos olhos e, por um instante, ela teve a impressão de já ter mergulhado naqueles mares, de ser íntima da profundura. Os dois ficaram sentados por sabe-se-lá quanto tempo, espantados por coexistirem.

Um dia ela lhe ofereceu a maçã. Ele teve medo. Há milênios provara do gosto e conhecia do mel e do amargor. Mas assim como o rio não é o mesmo rio, também a maçã não é exatamente a mesma, e como saber sem provar seu sabor? Eles eram os únicos no mundo. E ela saíra de sua costela, não tinha para onde mais voltar. Fora naquele homem o nascimento do primeiro sonho e da primeira dor.

Foi ali, pois, naquela praça, que eles se reconheceram até o mundo acabar.

sábado, 12 de março de 2011

Viver junto


Outro dia uma amiga me disse que o ruim das pessoas acostumadas a viverem sozinhas é que com o tempo elas ficavam cheias de manias. Daí que a tendência era se tornarem mais e mais sós, pois a convivência exige essa tolerância para que o outro bagunce um pouquinho sua vida. O livro largado sobre a mesa, a cortina aberta, o fuso horário de cada um.

Eu gosto da vida a dois, a três, a cinco. Eu venho de uma família que me deu liberdade para tomar minhas decisões e ir aonde quer que fosse sem ter de me explicar. Por isso eu sei o gosto de dividir sem perder a autonomia. E eu tenho esse prazer em compartilhar o espaço e a vida sem perder o espaço ou a vida.

Todas as experiências de viver junto que tive até hoje foram boas. Quando se vive junto, o outro não é o programa. A vida é o programa, e o barato é esse. No namoro, nós saímos pra ver o outro. No casamento, nós saímos pra vida e o outro sai conosco. Ele está ao lado, companheiro.

Eu já me casei algumas vezes e todos foram casamentos pra sempre. Teve a Erika, que dividiu quarto comigo no pensionato e se tornou minha irmã. Teve a casa L, que foi mudando as letras do alfabeto, que teve gente que foi e gente que chegou, mas todo mundo arranjou um outro jeito de ficar. Sempre foi bom chegar em casa e ter alguém pra conversar, ou simplesmente ficar cada um no seu canto, mas sabendo que o outro estava lá. Bom ter alguém que me levasse pra procurar sorvete de madrugada. Alguém que me desse um comprimido para dor de cabeça. Alguém que fizesse um bolo. Que me ouvisse chorar. Alguém que gritasse durante um jogo de futebol na tv. Que me proibisse de sair de jeans. Sempre foi bom ter aquela pessoa que me enchia de alegria só em chegar em casa, quando eu já estava indo dormir.

Amanhã me mudo para a nova casa. E vou agregando, aumentando a família. Mas levo os que ficam. Porque casamento, para mim, tem que ser para sempre.


quinta-feira, 10 de março de 2011

Só pra me irritar (em dose alopática)


E se de repente todas as pequenas coisas irritantes resolvessem se reunir em um mesmo dia só pra me irritar?

Já às 5 da manhã meu sono seria interrompido por um aviso de SMS no meu celular. Ainda meio adormecida, eu abriria a seguinte irritante mensagem: "Quer ligar de graça de Tim para Tim para qualquer lugar do país?" A essa hora?? Não, não quero. E, depois de rolar irritada pela cama, eu adormeceria novamente.

Assim que voltasse ao meu sonho irritantemente feliz, que, só pra me irritar, seria apenas um sonho, tocaria o despertador. Não preciso dizer muita coisa. Tocaria o despertador. Irritante.

Então eu chegaria à sala e a tv estaria ligada no último volume, só para fazer barulho, pois não haveria ninguém assistindo. Eu sairia de casa irritada e, como se não bastasse, o elevador demoraria muito pra chegar, pois algum morador teria resolvido segurar a porta. Quando o elevador chegasse, ainda por cima, estaria repleto de um irritante perfume forte e adocicado, que me deixaria espirrando e com dor de cabeça.

Eu chegaria ao ponto de ônibus e veria o 422 chegando. Eu acenaria, mas ele passaria pela esquerda e me deixaria esperando o próximo, que já chegaria lotado. Eu entregaria uma nota de dez reais à cobradora, que me daria o troco em irritantes moedas de cinco centavos. Eu viajaria a pé com os outros passageiros passando, encostando e respirando em cima de mim. Quando um lugar fosse desocupado, a pessoa no assento ao lado colocaria sua sacola lá. Irritada, eu pediria licença e me sentaria ao seu lado: uma mulher irritantemente gorda que ficaria encostando o cotovelo em mim.

Chegando ao curso, eu chamaria o elevador, que não viria. Alguém teria deixado a porta aberta lá em cima e, em consequência, eu teria que subir a escadaria a pé. Já na aula, alguém apresentaria cena sujando a sala de água e pedaços de papel e, acabada a apresentação, nem se daria o trabalho de limpar. Irritada, eu grunhiria qualquer coisa, antes de voltar a trabalhar. Mas o trabalho não renderia, pois alguma pessoa discordaria de tudo, mas sem propor uma ideia sequer.

Então, como só a manhã já teria sido irritante o suficiente, eu iria para casa dormir e só acordar no mês seguinte.

PS: mencionei que estaria de tpm, com sono e com fome?