quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Dos desejos


Quando mais nova, eu costumava dizer que tudo que eu desejava acontecia. Naquela época eu era mais sábia. Em caso de estrela cadente, disputa de cílios ou osso de galinha, meu pedido era sempre o mesmo: FELICIDADE. E felicidade era acontecimento constante.

Eu tinha essa prudência de não fazer pedidos concretos, pois acreditava piamente na força dos desejos. E sabia que aquilo que eu queria - os fatos, pessoas, objetos - não necessariamente me fariam feliz. Mas, quando algo me surpreendia, normalmente algo em que nunca tinha parado para pensar, eu agradecia ao universo. Aquela era a dádiva: felicidade em forma de algo que eu desejava tão profundamente, que nem tivera a ideia de desejar.

Algum tempo atrás eu resolvi nomear felicidade. Ela se revestiu de uma cara específica. Desta vez eu quis. Eu quis tanto que felicidade se conformasse àquilo que eu decidira ser caminho. Eu mobilizei o mundo, os pensamentos, os amigos. Eu concentrei todas as minhas energias na conquista daquilo que eu julgava quase impossível. Até que o impossível aconteceu.

Então eu não quis mais.

Não venham me dizer que a gente só valoriza o difícil, pois não é verdade. Eu sou feliz com picolé de morango, com brisa e com risada de criança. Mas aquilo, aquilo por que eu tanto pedi ... aquilo eu desnudei e não encontrei felicidade.

Hoje, tesoura em mãos, cortei um dos últimos resquícios daquele desejo: a fitinha vermelha do Senhor do Bonfim, que persistia no tornozelo. Ainda me perguntei se poderia negociar com o santo, trocar o pedido, mas não. Não quis querer felicidade nomeada e definida.

Não sei dos caminhos certos.

Eu quero o mundo em aberto.

Amém.

domingo, 21 de agosto de 2011

Austrália - última parte: CORAÇÃO


(O retorno)

Certa vez, por ocasião do fim de uma (im)possibilidade amorosa, uma amiga desabafou: "Ainda bem que terminou da melhor maneira possível. Mas meu medo não era por você, era por ele. Você, eu sei que sai ilesa."

É uma amiga que me conhece a ponto de saber minhas margens. As impossibilidades que eu não aceito, ela prevê. E eu entendo bem o que ela quis dizer. Ela sabe que eu me jogo dos precipícios e sobrevivo.

Mas ilesa, ilesa, eu nunca saí de nada.

Nasci para pedra, madeira, argila. Matéria-prima do mundo para que ele me fira e conforme. Eu tenho essas marcas - tantas - dos lugares por que passei, das pessoas que por mim passaram. São elas que dão meu desenho.

E, porque não quero enrijecer em uma mesma imutável figura, é preciso que eu me permita esculpir. E, porque são as horas mais suaves que causam os sulcos mais profundos, é preciso que eu me deixe amar. E, porque são as fontes que me dão polidez, é preciso que eu possa fluir. E, porque são os tombos que me aparam as arestas, é preciso que eu me deixe lançar.

Eu me lancei nos dias, nos sabores, nos caminhos, nos encontros. Eu quis experimentar o possível, porque gosto de banheiros limpos, mas gosto mais de estar aberta para a vida. E de pessoas que também estão. Eu quis o desconhecido, porque ele transforma o que o conforto mantém. Eu me lancei. Agora já não sei.

Já não reconheço os contornos, que são outros. Faltam pedaços e essa falta ainda dói. Dor de saudade e de possibilidades infinitas. Mas é essa ferida que desvela as outras camadas: uma nova escultura dentro da matéria-EU.

Sobrevivente, sim. Ilesa, nunca.

Eu me recuso a sair de casa e voltar a mesma.

quinta-feira, 18 de agosto de 2011

Austrália - quarta parte: AR


(De Sydney a Bali )

Eu começaria essa história por uma imagem. Não é meu o ponto de vista, mas virou minha memória, também. Eu chegando pelo caminho de pedra, arrastando a mala entre as plantas. Ele me viu do alto, da varanda. E, ao longo dos dias, tantas vezes me descreveria esse momento dizendo ser o melhor de todos os seus meses de viagem.

Eu chegando com minha mala. Mas houve tanto antes e tanto depois. Houve Sydney, onde desembarquei para ficar, a princípio, uma semana inteira. Mas havia Bali, essa semente de ideia crescendo de forma tão monstruosa. Houve o estresse da cidade, um telefonema que me fez chorar e depois. Uma decisão completamente impulsiva, uma leviandade tão irresponsável a ponto de me fazer feliz. Uma companhia aérea, uma passagem em mãos. A vontade de sair pulando e gritando. Alegria contida, engolida, engasgada de vergonha. Eu quis berrar na Harbour Bridge, na Sydney Opera House, nas galerias e galerias. Então me cansei da cidade e voltei ao aeroporto à espera.

Foram duas noites viradas sem uma cama, dormindo em lanchonetes e aeroportos. Então cheguei. Com apenas o dinheiro do visto e um e-mail para minha mãe, indicando meu paradeiro e pedindo socorro. Os taxistas vinham me oferecer serviço e eu não sabia o que dizer. "É que normalmente as pessoas, quando viajam para outro país, levam pelo menos algum dinheiro", diria meu amigo mais tarde. Eu não. Eu tinha apenas a vontade.

Então expliquei a situação a um motorista mais prestativo. Poderíamos passar em uma agência, mas eu não tinha certeza se poderia pagá-lo. Ele disse que não perdêssemos tempo e me levou. E lá estava o dinheiro enviado pela minha santa, santa, mãe. Mais tranquila, voltei ao taxi e seguimos um nome.

Eu arrastando a mala pelo caminho de pedra. Ele me gritando da varanda. Então eu pulei e gritei toda a alegria engasgada. Se eu soubesse antes - eu diria. Tudo tem uma razão - ele respondeu tantas vezes.

Anoxia - diagnosticou minha irmã, quando expliquei a sensação que tinha, que tenho sempre. Outra amiga diagnosticara claustrofobia, o que comumente causava uma discussão. A caminho da faculdade, de manhã cedo, eu fazia questão de deixar uma frestinha da janela aberta, mesmo congelando de frio. E, quando ela dizia, eu insistia não ser claustrofóbica. Mas sou. E quase nunca tem a ver com janelas abertas, mas com o espaço que tenho para espalhar a alma. Da última vez em que me pediram amor, eu fugi de bicicleta. Como se o vento aumentasse a velocidade de entrada de ar nos pulmões. Eu dou amor ilimitado, mas não me peçam. Nunca fui boa em cumprir expectativas.

De volta a Bali, eu respirava. Ele na poltrona, eu na mureta da varanda. Nós fechávamos os olhos para sentir o ar nos pulmões. E às vezes eu os abria só para ver o seu rosto, olhos fechados, escutando o silêncio. Acho bonito ver gente em estado de graça.

Era bom estar com ele e era bom que fosse assim, não um romance, mas sintonia e amizade. A gente compartilhava esses longos silêncios. Eles eram preenchidos de um ar fresco de plantas e flores, de cantos de pássaros, de um estar no mundo da forma mais plena possível. Então voltávamos do quase transe e engatávamos longos diálogos.

Todo dia tinha uma flor. Um templo. Uma caminhada. Um mergulho na piscina. Uma única mesa no restaurante, onde podíamos nos espalhar no tatame. Um milkshake de banana e às vezes uma massagem. Ele fumando um cigarro, eu cheirando uma flor. Ele com uma lata de cerveja, eu com uma barra de chocolate. E, quando acordávamos de manhã, já havia sempre na varanda uma garrafa térmica com chá. Então passava o homenzinho e nos via sentados, amanhecendo. E trazia panquecas e frutas. Quando perdi a noção dos dias e das horas, me respondeu meu amigo: Hoje é Bali, amanhã é Bali. É esse o nosso tempo.

Muitas vezes me perguntei como seria ter feito essa viagem sozinha. Menos conforto, mais liberdade, provavelmente. Talvez fosse solitário não ter com quem compartilhar tamanha beleza. Talvez não.

Em meu penúltimo dia acordei atacada, larguei-o no quarto e saí andando sem mais explicações. Anoxia. Visitei mercados, conversei com as pessoas na rua, andei descalça na praia. Uma menina passou por mim de bicicleta, deu meia-volta e guiou meu trajeto. Ela tinha a pele morena e longas tranças. Quase tive certeza de que ela me identificara como irmã no mundo. Aconteceu comigo. Olhando aquele povo, eu podia jurar ser um deles. Indonesiana. Então voltei balinesa ao quarto. Meu amigo estava lá, tranquilo, lendo o livro que eu comprara na Austrália. Ele ficou feliz ao me ver e não pediu explicações. Almoçamos juntos e livres.

No dia seguinte acordamos cedo, ao som do despertador. Tomamos um café-da-manhã silencioso na praia. Aquele cheiro de mar. Eu o observei mais uma vez com os olhos fechados em êxtase. Ele não tinha tranças compridas, olhos puxados ou pele morena. Era um alemão que, por uma sucessão de acasos, encontrei na Austrália. Mas era, certamente, um irmão no mundo.

Nos abraçamos longamente quando meu motorista chegou. Desejamos nos encontrar novamente em vida, mas, secretamente, quase sabemos que não. Então segui o dia, um dia que seria livre e só meu, antes de ser deixada no aeroporto. Visitei templos e vulcões. Escolhi o restaurante do meu gosto. Caminhei no meu ritmo. E, quando me dei conta, estava compartilhando mentalmente as experiências com ele, pensando que ele reclamaria da comida ou que adoraria a paisagem.

E parti no Dia da Independência de Bali, cidade em festa. Uma dor e uma alegria. Sempre a mesma e sempre na mesma medida.

Eu arrastando a mala pela estradinha de pedra.

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Australia - terceira parte: ÁGUA


(Cairns e a Grande Barreira de Corais)

A praia era lamacenta e a cidade nao era especialmente bonita. Mas, por algum motivo, eu caminhava nela com uma felicidade crescente, que beirava o êxtase. Talvez eu fosse uma pessoa climática, foi o que me ocorreu. Dê-me um sol de leve e uma brisa fresca que eu me torno facilmente a pessoa mais feliz do mundo, explosiva de prazer.

E as pessoas ali nao eram festa. Eram pessoas, apenas. Conversavam sobre viagens e livros e comidas. E essa convivência que flui com a simplicidade me agradava, me agrada.

Entao parti naquele barco, animada porque conheceria a Grande Barreira de Corais. O mar estava agitado e sacudia o barco até nao poder mais. Eu fui me sentindo mal e, com o enjoo, também veio uma tristeza. Debruçada sobre o mar, vomitei o café da manhã, depois o copo d'água que bebi. Naquele momento, decidi nao colocar no corpo mais um grão de comida e nem uma gota de água enquanto não estivesse em terra firme, o que cumpri ate o fim.

Lá estava eu, sentada no chão no barco, arrasada, pensando em como faria para fugir daquele lugar e me odiando por ter me metido em um passeio de dois dias, quando um só já seria o suficiente, e recordando o dramin que eu deixara na mala, no hostel. E eu me lembro de olhar para o mar, de um azul escuro agitado, e de repente me sentir pequena, muito pequena e muito frágil. E de me sentir traída por aquele azul infinito em que tantas vezes desejei me confundir. O universo subitamente me parecia hostil e eu queria escapar de alguma maneira. E eu, que sempre busquei o infinito, me vi questionando se não acabaria nunca o eterno movimento do mundo.

Ventava muito e eu me encolhia naquele barco, repleta de agasalhos que não me esquentavam. Disseram que a água era morna, entao fui fazer snorkel e achei complicado e tive medo. E eu era tão vulnerável naquele momento, se ao menos pudesse sumir, desaparecer no mar, mas não aquilo, nao me agitar, ter frio, calafrios.

Algumas pessoas que tentavam mergulhar voltavam rapidamente, dizendo se sentirem mal ou não serem capazes. Como eu seria capaz, então, eu, que nem podia mais com o movimento das coisas e que já achara dificil nadar com snorkel?

Mas então ele me pegou pela mão e, quando vi, estava imersa no silêncio do oceano. "But it's calm under the waves, in the blue of my oblivion"... esta música, que minha irmã costumava escutar na adolescência, me vinha como um mantra. Porque o silêncio do fundo do mar comportava uma vibração religiosa. Eu não tinha mais um corpo, eu não tinha frio, eu não tinha medo. E, sobretudo, eu não pensava ser possivel ver as imagens que estavam à minha frente, meu deus! Os corais, os peixes coloridos e todos aqueles seres... o que seriam? Eu havia visto fotos, videos, mas isso existia no mundo real? Uma pessoa comum pode ver isto em vida?

E de repente me ocorreu que meu problema era com a superfície. Eu gosto do mergulho e de tudo aquilo que com ele advém. Tambem me ocorreu que o oceano é esse misterio, esse vai e vem, esse leva e traz. E o melhor que eu podia fazer, mesmo em meio às perdas e ao caos da imensidão, era mergulhar, mergulhar.

Eu gosto do fundo das coisas. Eu gosto das pessoas que são pessoas, não festas, não shows. Por isso, naquela noite, vestida para sair e encontrar um grupo grande e barulhento, nao resisti quando ele, uma pessoa que gosta de livros e que acha que uma vida nao é o bastante, me convidou para compartilhar seu jantar. Era a primeira vez que cozinhava abóbora.

Em terra firme, depois de dois dias de frio, enjoo, fome e contato com o divino, eu comia um prato aconchegante, feito por mão amiga.

Um dia alguém me disse que minha onda era me aproximar e recuar. Não era. Basta essa mão amiga que me convide ao mergulho. E um oceano aberto e transparente, com peixes coloridos. E mergulhamos em músicas, em listas infinitas, em desenhos, em supermercados.

Depois disso eu seguiria para um lado e ele para outro. Então resolvemos, na última noite, preparar um outro jantar, o jantar de despedida. Compramos batata, aspargos, carne e salada. Ele cozinhou, eu comi e comi. Ele ficou feliz porque não sou dessas que comem só meio aspargo e dizem estar satisfeitas. Eu não. Eu mergulho. E celebramos o encontro e a partida, aceitando que assim é a vida, tal qual o mar. Ele traz, ele leva. Cabe a nós mergulhar.

E fiquei em paz com o eterno movimento do mundo.


segunda-feira, 8 de agosto de 2011

Australia - segunda parte: FOGO



(Top End & Red Centre)


Segui minha viagem sozinha em direção ao extremo norte do país. E um verão inesperado em pleno inverno australiano me pegou de surpresa. Sol ardente e clima de festa em uma cidadezinha que eu esperava encontrar perdida no meio do nada. Caminhada por galerias charmosas, piscina com maiô emprestado, cinema a céu aberto e gente, muita gente jovem de todos os cantos do mundo. E eu, que chegara com aquela sensação de estar sempre de fora, num piscar de olhos fazia parte da festa.

E em outro piscar de olhos estava acampada sob uma abóbada de estrelas infinitas no céu, com noites de fogueira que faziam trincar a pele. Dias quentes de rochas e trilhas e cachoeiras. De escalar montes para, lá no alto, encontrar uma praia de areias finas e águas frescas. E em outro piscar de olhos eu me despedia do local dançando em uma balada australiana e, mais um piscar, eu voava para o Red Centre, ao lado de um canadense que me dava dicas e que tinha as bochechas vermelhas, vermelhas.

O avião aterrissava na cidade e me confundia, pois eu não via casas, edifícios, construções, apenas terra e montanhas muito vermelhas, com arbustos de um verde-claro infinito. E então, de repente, estava diante de uma rocha incrivelmente grande e vermelha, repleta de inscrições que contam a história de um povo. Eu cheguei pensando em escalá-la, mas, quando tive a oportunidade, já estava imersa no ambiente de sacralidade daquele local. Ali residia toda a ancestralidade daquele povo que era terra. Que dela vinha e para ela voltava. E que era, sobretudo, daquela terra vermelha desértica.

Mais noites de conversa em torno da fogueira, estrelas e estrelas, todo dia madrugar para ver o sol nascer em um lugar diferente. E mais rochas e mais imersão e tudo sempre mais e mais vermelho na terra do fogo.