quinta-feira, 22 de setembro de 2011

23 de setembro


Antes de mim, já havia ela. Foi ela quem embaralhou o mundo inteiro para aguardar minha vinda. Quem chega com a primavera não pode ser simplória. Não ela. Que me abria o mundo com seu olhar afiado, desafiando o senso comum, as pessoas comuns, as coisas comuns. Comum? Não ela.

Ela que criava brincadeiras trágicas, que matava a Barbie das mais diversas maneiras, que levava cavalos para a garagem do prédio. Ela que pintava carrapatos e quadros belos e intrigantes. Que escrevia poesia desde muito cedo. Que me contava o destino dos poetas, uns reais, outros inventados, e abria feridas que para sempre doíam.

Ela que, ainda na infância, pedia que nossa mãe lhe comprasse livros sobre mutações genéticas. E vinha me mostrar, fascinada, fotografias de pessoas deformadas, cheias de bolhas, que eu me recusava a ver. Ela que nunca fechou os olhos para o fundo do fundo das coisas.

Ela que se deixava transbordar de mundo, que se se deixava cortar na carne pela arte e pelo amor. Em sua forma usual e na forma avessa. Que chorava aos soluços com as músicas na vitrola. Que se indignava com os livros de infância e o bonequinho doce fugindo.

Ela que me assustava com histórias sobre as bonecas. Que, em vez de "boa noite", dizia "cuidado", antes de apagar a luz. Que me chamava para dormir com ela e, no meio da noite, me expulsava da cama.

Foi ela que, num 23 de setembro, trouxe a primavera. Para que, quando eu chegasse, eu tivesse essa delicadeza, não do que é suave, mas de quem enxerga o entre-espaço milimétrico entre dois tons. A vida de dentro da vida que não se vê.

O cachorrinho da Barbie sempre morria. Sempre morria. Eu não sabia. Mas estava vendo vida nascer.

Um comentário:

Julia Lemos disse...

Que coisa linda! Com uma irmã tão instigante assim, só podia sair uma Lian!