segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Diálogo tepeêmico


Eu e Leilane acampadas na sala, vibe "Into the wild". Eu desabafo:

- Eu estava pensando seriamente em virar mendiga, mas existem alguns empecilhos.

- Como assim, virar mendiga?

- É, virar mendiga. Mas tenho pensado aonde posso ir sem correr o risco de ser estuprada. Ser mulher é f.

- É, é tão mais difícil ser mulher!

- Homem pode ir a qualquer lugar, fazer o que quiser. Se não tem dinheiro, não tem com que se preocupar. Mulher não.

- Mas, Lian, não é muito melhor virar hippie?

- Não, não quero ser hippie. Quero ser mendiga.

- Pensa bem, você pode ir morar em uma comunidade hippie, plantar, fazer artesanatos. Como mendiga, você fica presa à cidade.

- Boa ideia, posso ser mendiga no campo.

- Isso não é mendiga, é hippie.

- É índia. Posso fazer algo do tipo "Comer, rezar, amar", mas na variação "mendiga, hippie, índia". Eu gostaria de ser índia, mas acho que não posso assim, sem uma... permissão.

- A-hã. Você vai até a Funai e diz que quer uma permissão para ser índia?

- Deve ser permitido só para antropólogos, essas coisas.

- Acho que se você for a uma aldeia de verdade, tipo, na Amazônia, eles te aceitam.

- Eu já tenho cara de índia. Posso chegar e dizer "voltei, vocês pensaram que eu estava morta, mas estou aqui". Alguma criança deve ter morrido anos atrás, né?

- É, mas o que eles fazem? Eles enterram? Como você vai explicar que saiu de baixo da terra?

- Eu digo que me acidentei, perdi a memória, sei lá. Mas em vez de Amazônia acho mais fácil chegar ao Pantanal, que é mais perto.

- E como você pretende chegar ao Pantanal?

- De carona, ué. O problema é não ser estuprada no caminho.

- Nesse caso, Pantanal, Amazônia, é tudo a mesma coisa.

- É um problema isso... Por que não existem muitas mulheres caminhoneiras?

- Exatamente por isso.

- Com mulheres caminhoneiras nós poderíamos pegar carona sem medo.

- Mas elas também têm medo, porque têm que passar muito tempo na estrada sozinhas. Mas dá pra pegar carona com casal, é seguro.

- É, mas casal não dá carona. Eu viajando em casal não daria carona, pois gosto de privacidade.

- Casais mais velhos, talvez.

- Talvez eles me dessem carona se eu não fosse mendiga. Mas eu quero ser mendiga. Você colocaria em seu carro uma mendiga fedendo?

- Urgh, não. Mas tem que feder? Você não pode tomar banho?

- Não. Tem que feder. A ideia é estar do outro lado, entendeu? O outro lado... Sei que não é fácil. Sou dependente de algumas coisas. Tipo... pílula, papel higiênico.

- Está vendo? Até nisso é mais fácil ser homem.

- É... droga... Pena que o Brasil não é o melhor lugar pra ser mendiga. Acho que em países mais seguros...

- Você não queria viajar? Por que não vai ser mendiga em outro lugar?

- Ainda quero viajar muito. Por isso não posso virar mendiga em outro país, não quero ter problemas com vistos, passaportes.

- Você pode ir pra um país da América Latina.

- É mesmo. Existe algum país bem seguro, onde haja menos chance de estupro?

- O Uruguai! Dizem que lá é bem seguro.

- Mesmo? Que bom... vou pesquisar esse assunto.

- Deixa eu ver aqui... (ela entra na internet) Hum... taxas de estupro... Não estou encontrando muitas informações.

- Aposto que eles não têm muitos sites para orientar mendigos.

- Você tem razão, não têm.

- Já sei! Vamos criar um blog - guia para mendigos? É uma deficiência da internet, não ter esse tipo de informação.

- Você pode publicar um livro.

- Sim, um guia para mendigos! Mas será que é possível comprar/vender essa ideia?

- O problema é que ninguém levaria a sério. Teria que ser um livro de comédia. Você conseguiria escrever isso como comédia?

- Veja bem, eu estou até agora falando super sério, mas você vai ter que concordar que nossa conversa é cômica. Difícil vai ser convencer os outros da nossa seriedade.

- É...

- E voltamos ao ponto inicial. Ser mendiga sem ser estuprada. Acho que só se eu chegar bem feia... Não, acho que mesmo assim não impediria... Acho que só aquelas mulheres bem loucas, mas muito loucas mesmo, do tipo que as pessoas têm medo de chegar perto...

- Mas você não é tão louca assim.

- Não, não sou. E mesmo que algumas pessoas tenham medo de mim, acho que o estuprador não terá.

- É, ele definitivamente não vai falar "essa não, porque ela tem cara de brava".

- Eu até pensei se... Não.

- Não o quê? Ser estuprada? Não!

- Sabe... fiquei pensando em qual era o limite. Ficar sem dinheiro seria bom, porque sou muito orgulhosa, não sei pedir ajuda. E não tendo dinheiro eu teria que aprender a pedir. Passar mal, pra mim é um problema grande, não sei passar mal. Ser estuprada... Será que eu aprenderia com isso ou me traria sequelas eternas, traumas irreversíveis? Não. Não.

- Não.

- É. Não. Temos que pensar em um plano de ser mendiga sem esse risco. Porque eu quero voltar, sabe? E eu quero voltar viva e quero ficar bem. Mas meus pais vão me matar, quando eu voltar.

- Se você voltar rápido sim. Mas se você fugir por muito tempo, eles vão ficar tão felizes com a sua volta...

- Vejamos... acho que leva um mês para eles perceberem que eu sumi.

- Um mês? Você acha que leva isso tudo?

- Sim, porque umas duas semanas é normal eu não dar notícias. Do tempo de meus pais me procurarem, minha demora para responder, eles sabem que sou desatenta mesmo... acho que começariam a estranhar depois de um mês.

- Mas os meninos que moram com você não perceberiam?

- Não, ninguém sabe de nada. Eu poderia estar em qualquer lugar, em Goiânia, no Rio. Eu sempre fui acostumada a não dar satisfação para ninguém. Só teria que deixar um bilhete avisando, em algum lugar, para minha mãe continuar depositando o dinheiro do meu aluguel. Até porque fazer a mudança e depois fugir não seria fácil. Mas meus pais realmente vão ficar bravos quando eu voltar. O que é um problema, pois faço questão de voltar viva.

- Mas acho que eles vão ficar tão felizes com a sua volta, que nem vão estar bravos.

- Vão sim. A não ser que eu volte bem debilitada. É até bom, porque preciso mesmo emagrecer.

Sim, tivemos mesmo esta conversa, entre risadas e lágrimas, em uma tarde quente e tepeêmica.

- Agora deixe-me ir, porque tenho algumas coisas pra fazer ainda. Preciso terminar um desenho que comecei, ajudar a fazer o perfil da Karine e criar nosso site para mendigos.

E fui.

6 comentários:

ivan lima disse...

adorei a sua postura. adorei.

Mr. G disse...

kkkkkkkkkkkk!! só vc!! è tão burguesa q acha q o maior problema de uma mendiga é ser estuprada!! as q vejo por ai imploram pra q alguém as pegue!! rs!!

mas já reparou q tem menos mendigas q mendigos??

Fabiana disse...

Engraçado... Depois de anos sem te ver, sem conversar com você...
Hoje, receber notícias sobre você no STB, através de uma aluna do seu pai, que é mãe do meu namorado (essas coisas do mundo)...
E ler um texto sobre uma conversa que só poderia ser da Lian.
E apesar de todo esse tempo eu conseguir ouvir a sua voz e ver as suas expressões...
A saudade apertou no peito...
Vontade de outra vez...
Hoje vou reler suas belas cartas guardadas a tantos anos.
Beijos, amiga jamais esquecida...

A Literatura e Hudson disse...

Muito bom mesmo viu gostei d+.

Marcio Nicolau disse...

é, viver a margem é um risco...

Parabéns pelo traçado dos textos.

Estou seguindo.

tavaresjorgeluiz.blogspot.com disse...

Está aí,uma bela maneira de fugir do imposto de renda.ha,ha,ha.Belo texto parabéns.Até breve...Byjotan.