segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Excessos e exceções


Universo tem um jeito peculiar de rir da minha cara.

Ontem eu reclamava por receber amor em forma de excessos: produtos de consumo. É assim: para me verem feliz, as pessoas me enchem de coisas. Guloseimas e bibelôs. Eu sei que o fazem com a melhor das intenções. Dar amor em forma de coisas. E elas esperam. Esperam que eu tome o sorvete. Que aceite mais um pedaço de bolo. Que sorria com o brinco novo, com o chaveiro novo, com um sorriso novo. E, porque elas esperam, eu engulo um pouco mais de amor em seus excessos.

Mas eu não quero guloseimas e bibelôs.

Eu quero amor em forma de amor. Presença. Palavra. Silêncio.

Hoje Universo atendeu a meu pedido. Ele veio. Ofereceu amor. Simples e pobre.

Cheguei ao calçadão da praia, para esperar uma amiga. Havia um banco, com um mendigo sentado em um dos cantos. Apoiei a bicicleta e me sentei do outro lado. Tirei o celular da bolsa, para mandar mensagem. Ele observou. Tirou um controle-remoto de sua sacola. Sentou-se mais perto:

- Você me ensina a usar este celular? - mostrando o controle-remoto.
- Ih, desse seu eu não sei usar, não.
- Não sabe não?
- Não.
- Será que vira nave?
- Acho que não.
- Aperte um botão.

Apertei.

- Não virou nave. - observei.
- É, não virou. (pausa) Eu queria ter um aviãozinho, para voar por aí.
- Eu também queria.
- Uma asa-delta.
- É...

- Você é civil ou militar?
- Civil. E o senhor?
- Eu também sou civil.
- Ainda bem, né?
- Muitos militares morrem, né?
- Eu não gostaria de ser militar, imagino que o senhor também não.
- Eu gostaria de ganhar dinheiro, não importa como. (pausa) Como você ganha dinheiro?
- Eu trabalho.
- O que você faz?
- Hum... Sou jornalista.
- Mesmo? Me entrevista. Este é o microfone (me apontando o controle-remoto).
- Sem microfone.
- Está bem.

- De onde o senhor é?
- Da Tchecoslováquia.
- Ãhn. O senhor tem filhos?
- Tenho.
- Quantos?
- Que eu tenho certeza, só um.
- Conte-me uma coisa interessante, qual a coisa mais marcante que aconteceu com o senhor?
- Te conhecer!
- Mentira.
- É verdade.
- Então a segunda coisa mais interessante.
- Eu cheguei em uma janela, uma janela enorme, você precisava abri-la para ver toda a felicidade e o rosto de Deus.

- O senhor é religioso?
- Sou.
- De que religião?
- Eu acho boas todas as religiões.

Minha amiga não chega, eu começo a me agitar, pego o celular novamente. Ele lê:

- Sony Ericsson.

Fico espantada por ele saber ler.

- O senhor estudou?
- Estudei.
- Por quanto tempo?
- Fiz nove faculdades.
- De quê?
- Acupuntura. Macrobiótica (juro que ele falou isso!)...
- Qual foi seu curso preferido?
- Vulcanologia.

- Quais vulcões o senhor conheceu?
- Todos de todas as capitais do Brasil.
- E qual o mais violento?
- O da Itália.
- Mas esse não é do Brasil.
- Marataízes.
- É esse o vulcão mais violento do Brasil?
- Não, o mais violento é o de Nova Iguaçu.

- Qual o maior mal do mundo? - dessa vez é ele quem me pergunta. Tenho vergonha de lhe falar da desigualdade, da miséria, da fome.
- Violência. Ódio. As pessoas se matando.
- Eu também acho! - ele estufa o peito, triunfante.

- O que o senhor faz por aqui?
- Tento conseguir uma casa pra morar.
- Como é a casa em que o senhor gostaria de morar?
- Aquela ali. Casa de Cultura Laura Alvim.
- O senhor gostaria de morar lá? Nossa, é uma casa enorme.
- É mesmo, dois andares.

- Onde o senhor gostaria de conhecer?
- Gana. Camarões. Indonésia. E você?
- Grécia.
- Eu sou de lá!
- O senhor me falou que era da Tchecoslováquia.
- Da Tchecoslováquia é minha identidade. A minha cor. Tchecoslováquia fica na África, né?
- Não, na Europa.
- Mas são pretos.
- São branquelos.
- Mas tem pretos?
- Deve ter, mas não são maioria.

- Você tem namorado? - ele me pergunta.
- Tenho.
- Me dei mal.
- É.
- Você gosta de beijar?
- Só o meu namorado.
- Mas namorado não precisa ser só um, né?
- Precisa sim.
- Você me acha bonitinho?
- Acho.
- Me beijaria?
- Não.

Ele se aproxima um pouquinho mais. Fecha os olhos e faz um grande bico, querendo me beijar. Dou um pulo do banco.

- Então, minha amiga está chegando, preciso ir.

Saio arrastando a bicicleta, sem saber pra onde. Entro na ciclovia e começo a pedalar, atordoada.

Eu pedi amor sem excessos. Universo se encarregou de enviar. Ele sempre me apronta dessas.

Ele ri de mim. Eu rio junto.

Coisa de bons amigos.