quarta-feira, 29 de agosto de 2012

Bolívia



O mais importante sobre a Bolívia é que ela me chamou. E, mesmo que eu não saiba o que isso significa, eu atendi a seu chamado. A verdade é que até o ano passado não me havia ocorrido visitá-la. Mas então começaram a aparecer os pequenos sinais. O livro "Expedição BraBo", da minha amiga Daniella Barbosa, sobre sua experiência no país. As fotos incríveis do meu amigo-irmão grego Stelios. E, assim por diante, outros sinais foram aparecendo no meu caminho. Eu entendi que a Bolívia me chamava e fui até ela.

"O que será que me espera aqui?" - às vezes eu me perguntava. Seria um amor, uma descoberta, uma chance? Não estou à procura de um amor. Talvez uma descoberta, ou uma chance... de quê? Para o que quer que fosse... eu fui. Achei bonito entrar no país a pé. Passei pela polícia federal do Peru e caminhei até a da Bolívia, no outro lado. Depois foram só alguns minutos de ônibus até Copacabana, minha primeira parada.

Era fim de tarde quando chegamos. O sol se punha sobre o Lago Titicaca. E eu repetia que ia ser bom, que podia pressentir os bons ventos que sopravam: "Tem alguma coisa, sabia? Não sei o que é, mas tenho uma conexão com esse país. Faz um tempo que a Bolívia me chama, não te falei?" E ser recebida assim, por pura beleza, confirmava minhas expectativas.

Tinha que ser bom. E foi. Mesmo que eu tenha passado tão mal no barco para a Isla de la Luna e a Isla del Sol. Àquela altura, não aguentava nem mais um barco no caminho, mas pensara que num lago a coisa seria diferente. Acho que subestimei o poder e a vastidão oceânicas do Titicaca. "Tiene que pagar", já diziam as criancinhas pequenas, habitantes das ilhas, mal olhávamos pro lado. Elas, também, filhas desse nosso mundo do dinheiro.

Teve o Salar de Uyuni com seu infinito branco debaixo do céu azul. As lagoas coloridas e as montanhas. Os encontros, as pessoas, as trocas. Os longos caminhos de carro ao som das mesmas músicas andinas. E, ao fim de um desses caminhos, teve talvez o momento mais estranho da viagem: deixar parte do grupo na fronteira do Chile. Engraçado entregar pessoas assim em um outro país, como entregássemos crianças na escola.

E depois teve La Paz, que eu amei muito antes de conhecer. Já no ônibus, fui listando nomes de cidades do mundo, à procura de outro tão bonito. Não encontrei. "La Paz invadiu o meu coração...", vinha-me assim, na voz de Gil. É que, se eu viesse parar neste planeta por acaso e pudesse escolher qualquer lugar para viver, não teria dúvidas em escolher uma cidade com este nome. Foram tardes de caminhadas tranquilas. Foi um domingo em que as pessoas invadiram a avenida principal, para brincar e assistir apresentações artísticas. Jogar xadrez. Empilhar blocos. Observar outras pessoas. Eu viveria em um lugar assim. La Paz.

É claro que eu gostaria de dizer que já andei no Trem da Morte, como era o plano inicial. Mas o Tempo, sempre ele, chegou atropelando, junto com as atividades que me esperavam com urgência no Rio. Então comprei uma passagem aérea e voltei, sem jamais entender por que a Bolívia me chamara.

Quando voltei, fiquei por um tempo assim, meio espantada com a vida. É que, no tempo em que eu estive fora, tanta coisa acontecera. A morte do pai de uma amiga. A vida que começava no ventre de outra. Em casa, encontrei um gato e um cachorro novos, o que me deixou espantada também pela vida do Jonas, nosso outro gatinho, com suas mudanças repentinas. Sempre elas, as despedidas. E também sempre os novos encontros.

Então, mesmo que eu não entenda nunca o chamado da Bolívia, às vezes penso que ela me chamou para isso: para me falar da vida e das pessoas, que algum dia acabamos deixando em algum deserto.

domingo, 26 de agosto de 2012

Peru



Em parte por falta de tempo, pelo trânsito natural das coisas, pelos compromissos atrasados que me esperavam na volta. Mas em boa parte porque este fosse o país mais difícil de processar. E ainda não consegui entender seu impacto em mim. Eu fiz rabiscos, rascunhos. E faltava sempre. Por isso hoje me sento à frente do computador, forçando-me a relatar algo que talvez não baste, que permanece indigesto, em processo. 

Eu esperava a identificação fácil, já que me considerava andina de alma, pelo espírito indígena, pelas cores, pela paixão por montanhas e milhos. E o que encontrei no Peru foi escavação. Foi denso, lento, profundo. As paisagens misturavam extremos de beleza e melancolia. "Parece que tudo por aqui está em construção", me disse meu companheiro de viagem, enquanto olhávamos as casas sem pintura. "Serão construções ou ruínas?", eu brincava, diante das cidades das antigas civilizações que visitávamos. 

Foram longos os trajetos, os dias nas estradas. Às vezes algumas paradas. Mulheres cozinhando nas ruas, vamos jantar por aqui. E os senhores comiam seus pratos fartos, conversando sobre os caminhos. E sempre me pareciam tão dignos os tais senhores. 

Eu escolhera pelo guia a trilha que queria fazer na Cordillera Blanca: "Não exige técnica, basta que a pessoa esteja aclimatada". Após dois dias em Huaraz, pensei estar. E iniciei uma trilha que iniciou, também, em mim, caminhos novos. Foram muitas as inaugurações: o primeiro acampamento selvagem, baixíssima temperatura, altitude. Tinha sempre o ar que me faltava. As dores de cabeça, apesar de todas as formas de coca (com exceção de cocaína) que consumi. À noite, o frio que congelaria os sonhos, se me fosse possível adormecer. 

Foram quatro dias em que cada passo era árduo. A cada nova subida, eu pensava em desabar, parar, ficar por ali mesmo, não fosse a necessidade de uma barraca que quase amenizasse o frio da noite. O inferno era os outros, como já sabia Sartre. Não bastasse uma aversão que já tenho a acompanhar o ritmo alheio, desta vez eu nem conseguia acompanhá-los, ainda que quisesse. Não queria. Eu lera que cada pessoa reage de modo diferente à altitude. Mas não estava preparada para reagir da pior maneira. Eu que sou acostumada a ser pequena em tudo, menos em transitar em meio à natureza. Eu que só sabia ser pequena sozinha, sem depender de ninguém. Tive que aceitar ser ainda menor. 

Alguns dias antes de iniciar a viagem, eu levara um amigo à Pedra da Gávea. A certa altura, ele brincou: "Vou te ofender: quer ajuda?" Era piada, mas revelava tanto. É que, no espelho, eu era a menina que sempre recusava quando alguém me oferecia a mão. 

E súbito descobri meu real tamanho. Ser menor, sempre menor. Crescer para aprender a ser pequena. E levar esta lição para as novas trilhas, para os novos trilhos, para os trens. 

E houve tanto mais. Machu Picchu e suas ruínas, talvez um dia eu fale disso. Houve as estradas, os estragos. É que tanto de mim eu encontrei ali, não no modo simples e esperado da identificação fácil. Mas na dor da escavação. 

Eis-me aqui: Ruína e construção.




sábado, 18 de agosto de 2012

Equador


O plano era este: sair de Galápagos e descer o mais rápido possível para o Peru. O tempo era curto e a expectativa dos outros ares vinha de longa data. Mas fomo-nos deixando ficar. Pouco. Pouquíssimo. Três noites em Quito e uma em Cuenca, apenas. Mas ainda mais do que o programado e muito mais do que o calendário apertado permitia.

Eram sempre as coisas pequenas que nos seguravam. As caminhadas e os sorrisos. Os sabores. As tardes vadias. Tão surpreendente ser arrebatada pelas esquinas cotidianas. A vizinhanca. Mariscal.

Sempre dávamos uma volta da nossa hospedagem, atravessando uma grande avenida, até chegar à rua do burburinho: Mariscal Foch. Apenas no último dia descobrimos que aquela era a nossa própria rua e que a volta era absolutamente desnecessária. Engracado ela ter se tornado exatamente a parte mais necessária daqueles dias. Estavam nos caminhos tortos, os encontros.

Depois da primeira caminhada passando por restaurantes mexicanos, americanos e argentinos, decidimos comer em um lugarzinho simples, de comida típica, bem na frente do hotel. Talvez fosse El Chicharron o nome do estabelecimento. Nunca tive memoria boa para nomes. Mas o sabor e os afetos permanecem frescos.

No restaurante, apenas uma mesa ocupada. Um grupo de senhores, incluindo o dono do lugar, bebia e jogava cartas.

- Tem cardápio?

Não tinha. Em vez disso, uma pequena lista de pratos na janela.

- O que é isso? O que é aquilo?

O senhor se dividia entre as vontades de nos atender com solicitude e de voltar logo ao seu jogo.

- É gostoso, é gostoso. - ele nos respondia.

E seus amigos vinham até nossa mesa, olhos curiosos infantis, nos explicar do que era feito cada prato. No fim, o dono resolveu quase arbitrariamente nos trazer uma porção de choclo mixto para provarmos: uma espiga de milho cozido, grãos amarelos de milho tostado e crocante, grãos gigantes e brancos, carne de porco assada e sequinha, um pedacinho de pele de porco crocante, uma massa deliciosamente feita de batata, banana frita, abacate e queijo. Temperávamos tudo isso com um molhinho ao estilo ceviche que ficava sobre a mesa.

E o milho, ou choclo, como explicar? Pra começar, devo dizer que sempre fui uma amante desse alimento e de todos os seus derivados. O que eu não sabia era que eu era completamente ignorante daquilo que eu pensava conhecer e amar. Acontece que só entao, naquele restaurante em Quito, eu experimentei o verdadeiro milho: uma espiga branca, macia e suculenta, com grãos gigantes e gordos. Fui ao céu e voltei. Fui novamente com o copo de limonada refrescante, receita secreta, da qual só podíamos saber que levava limão e água gaseificada. Depois de terminar a refeição, pedi outro prato repetido. Uma satisfação generalizada dominava o ambiente. A felicidade da boa mesa. Os senhores, orgulhosos, retornando ao seu jogo de cartas.

Voltamos na tarde seguinte ao restaurante, pedindo o mesmo prato. O dono anunciou, diante da minha decepção, que não havia choclo aquele dia. Mas nos trouxe um prato de hornado, que era quase igualmente delicioso. Ele jogava cartas com senhores diferente da noite anterior e era gozado como ele sempre se dividia, tentando nos agradar e ao mesmo tempo voltar o mais rápido possível ao seu jogo. Enquanto isso, seus amigos tentavam prolongar o papo conosco, quase desejando estar no lugar do homem que nos atendia.

- Estou satisfeita, mas frustrada por não ter comido milho.

- Eu vi uma loja de milho mais adiante, vamos lá?

Los Desgranados, chamava-se. Era uma lanchonete em que você recebia um copinho de milho (o choclo suculento e gorducho), escolhia um molho e acrescentava por cima queijo ou carne. Não quis molho nenhum, senão uma manteiguinha. E pedia o mínimo possível de queijo, embora ele fosse saborosíssimo.

- Qual o nome dele?

- Esse é o queijo equatoriano, muito comum nas montanhas.

Descobrimos que aquele era o dia da inauguração do estabelecimento. Que fosse um dia de sorte. Seu dono chamava-se Fabian. Ele tambem adorava viajar e por isso nos deu várias dicas dos lugares por onde passou. Desenhou-nos mapas de Quito. Recomendou-nos programas, comidas. Retornamos no mesmo dia. E no outro. E no outro. E ali retornaríamos sempre, não fosse a partida. Era o milho suculento. Eram as amizades. Era Fabian e suas dicas. Carlos, o outro atendente, e seus sorrisos. E depois a mãe de Carlos, uma arquiteta simpática. Os novos clientes e amigos que iam aparecendo.

É claro que teve o teleférico, a Mitad del Mundo, a caminhada noturna pelo centro historico, La Ronda. Teve a procura por balas de coca, para prevenir contra os problemas com a altitude: o soroche.

- Sabes donde compramos caramelos de coca?

- Caramelos de coco?

- No, de coca.

- Coca?!

Os velhinhos da rua nos olhavam com cara de espanto. Encontramos. Mas só depois descobrimos que, ao contrário do Peru e da Bolívia, a coca era ilegal no Equador. Ops.

Mas, muito acima dos programas turísticos, tinha o trajeto diário: as amizades que fazíamos no caminho. Fabian, no Los Desgranados. As tardes na Republica del Cacao, provando chapéus panamá, recortando revistas e recolhendo dicas para o restante da viagem.

Na última noite, descobrimos um restaurantezinho da comunidade negra. Comida baratíssima e de mãe. O atendimento não era lá essas coisas, até porque os garçons estavam muito mais preocupados em prestar atenção à briga que se desenrolava na porta do restaurante. Mas o prato era justo. Aconchegante.

- Podemos almocar aqui amanha.

- Mas não temos relação emocional com ninguém aqui. Se formos ao restaurante do senhor das cartas, vamos fazê-lo feliz.

Fomos. O restaurante estava lotado na hora do almoço e o dono era uma pessoa completamente diferente do senhor que ansiava por voltar ao seu jogo. Agitado e compenetradíssimo no trabalho. Alegramo-nos por saber que aquele lugar era tão movimentado. Ao nos ver, no meio da agitação, ele exclamou:

- Hoje tem choclo!

Anunciamos:

- Mas hoje queremos hornado!

Enquanto comíamos, ele aproximou-se da nossa mesa:

- Então vocês gostaram do hornado?

- Muito!

Despedimo-nos dele avisando que estavámos de partida.

- Se nao tivéssemos voltado hoje, ele para sempre pensaria que não retornamos por não gostar do hornado.

O que, definitivamente, não era verdade.

Refizemos nosso trajeto. El Chicharron, Los Desgranados, Republica del Cacao. Encontrávamos sempre alguém pelo caminho. O casal que eu escolhi chamar de argentino, embora ela fosse espanhola e ele, italiano. A criança no ônibus que me enumerava receitas: "Salsa de tomate, queso, un limonzito. Es riquissimo!"

E foi rapido. Rapidissimo. Mas a impressão era sempre de que eu poderia ficar. Chegada do nada. Fugida da prisão, talvez por transportar balas de coca. De que eu poderia ser ninguém ali e ainda assim ir ficando. Criando laços. Repetindo os sabores. Viver pelos caminhos tortos e pelas esquinas cotidianas.


quarta-feira, 1 de agosto de 2012

Galapagos


Tinha sempre uma mão amiga me puxando pelo pé:

- Lian, todo mundo está do lado de lá!

- Mas tem uma tartaruga do lado de cá!

Mais tarde ele me diria que, toda vez que olhava, via o grupo nadando junto, como fomos orientados a permanecer, e uma pessoa isolada, nadando pro lado oposto. Era sempre eu, MARavilhada, perseguindo um bicho qualquer.

Um dia fiquei sozinha com dois leões-marinhos. Eles se aproximavam, quase nariz com nariz, e, no último minuto, davam uma cambalhota. Eu, também, dava voltas na água, rindo abobalhada pelo tubo do snorkel, enquanto fingia ignorar os chamados do grupo, que já me esperava no barco.

Era esse meu inferno: um barco qualquer, que cheirava a combustível e chacoalhava em alto mar. Meu paraíso era mergulhar. Eu ia de um a outro, sofrimento e redenção. Às vezes passava o dia sem comer para minimizar o enjoo. Às vezes frio, vento e uma fumaça que me impedia de respirar. Às vezes uma pedra no oceano, uma ave, um detalhe qualquer, que fazia o tempo parar.

- Eu vi o rosto do tubarão! Que expressão engraçada ele tem!

Os segredos do fundo do mundo me sendo revelados. E quem sou eu para ter acesso a tanto? - às vezes eu me perguntava. Ver tartarugas gigantes, iguanas em bandos e rosto de tubarão nos faz parecer tão pequenos.

E, por ser pequena assim, eu merecia aquilo: o céu e o inferno. Era por isso que, sempre que alguém reclamava da falta de infra-estrutura, eu no fundo agradecia. Era preciso que estivéssemos em desconforto para que ficasse bem claro que éramos invasores e que aquele não era nosso lugar. Eu ouvia falar em desenvolvimento do turismo local e torcia pelo contrário. Torcia para que o turismo ali fosse sempre assim, parcialmente sofrido, para que nunca tivéssemos dúvidas de que aquela área não nos pertencia. Que o luxo e o conforto não alcancassem o local, para não atrair turistas que ali pisassem como se tirassem férias no Caribe. E, sobretudo, que o dinheiro nunca os atingisse, com sua lógica da destruicao e embalagens de sorvete atiradas à praia.

A vida que insistia em ser vida diariamente me dava bofetadas e me fazia questionar que direito eu tinha em estar ali. Mesmo que eu falasse baixo, pisasse leve e saísse pedindo desculpas, era sempre a casa do outro: a tartaruga que se escondia no casco, a iguana que cuspia quando ameaçada ou os leões-marinhos, que tentavam tomar seu sol em paz. E, quando eu via fotos de satélite das ilhas, me dava uma tristeza ao comparar o que elas foram ao que elas são. A área habitada crescendo, as cidades invadindo aquele pouco de mundo até então preservado.

Um guia nos explicou que em Galápagos houvera treze espécies de tartarugas gigantes. Com a recente morte de Lonesome George, sobravam dez, apenas. Tão perto de nós, a extinção das espécies. A vida que deixamos escapar, nossa vida que se extingue.

E todos os dias eu me envergonhava por ser gente. Eu me perdoava por ser gente. Então eu entendia. E aceitava. E agradecia. Toda gente é também bicho: seu lixo, seu rumo, seu rosto.

Estar no mundo é uma forma de alegria.

E posso sempre nadar pro lado oposto.