quinta-feira, 15 de novembro de 2012

Carta para alguém



"Tarde fria, e então eu me sinto um daqueles velhos poetas de antigamente que sentiam frio na alma quando a tarde estava fria..." (Rubem Braga)

... Então eu quis te escrever. Eu quis te escrever porque é o terceiro dia em que chove, e eu não tenho vontade de fazer outra coisa senão de chover palavras... porque esse tempo branco e frio me deixa melancólica... talvez angustiada, falei outro dia e alguém me disse que tínhamos que descobrir o motivo, eu falei que angústia é a própria angústia e que não há além. Só a chuva, talvez. A chuva traz à tona o vazio, que dialoga comigo diariamente. Eu quis chorar palavras, mas  se você estivesse ao meu lado talvez eu vomitasse silêncio. Talvez eu até colocasse esta carta em um envelope, como faço sempre para meus amigos que têm nome e endereço. Mas desta vez resolvi escrever esta carta para alguém, e alguém é tão amplo. 


Segunda-feira fez sol, veja só. Eu mergulhei no mar e voltei preta, ardendo. Terça amanheceu chovendo, eu amanheci muito cedo, fazendo cinema. É sempre bom fazer cinema, e eu tenho uma história bonita com este filme, cheia de sincronicidades. À tarde o frio doeu em mim tão fundo, eu tendo que fazer mala para viajar e carregando essa melancolia que não me soltava. E terminei o dia gravando para publicidade, entre pessoas boas e uma preocupação com o voo na manhã seguinte, que acabei perdendo. Devo ter assustado o taxista, com meu rosto de maquiagem borrada, fazendo-o voar pela Avenida Brasil. Depois andei por todas as companhias aéreas do aeroporto, procurando voo para o mesmo dia em vão. Voltei para casa, comecei a trocar mensagens com amigos e, quando me dei conta, já não fazia sentido o que eu escrevia. Apaguei em um profundo sono flutuante. Quando acordei, resolvi ir pra Barra cortar meu cabelo com Claudinho, um querido. "Fofo de tirar do lugar". Depois fui almoçar e, na saída do restaurante, meu telefone tocou. Paguei a conta falando e saí ao telefone. A alguns metros da saída, um senhorzinho me cutucou: "Com licença, essa salada é minha." E me dei conta de que carregava uma sacola do restaurante, tão distraída estava. Pedi desculpas e devolvi sua salada. 


Confesso que continuo como que adormecida, mas é um adormecimento que dói, machuca. Faz frio aqui. Fizesse sol, eu iria subir pedra e mergulhar no mar. Mundo muda tudo e cura sobretudo adormecimentos involuntários. Escaladas e mergulhos são escavações. É pegar a matéria de que somos feitos e misturar com terra. Sendo terra, fica tudo bem. Parece que durmo há três dias. Durmo e tenho sonhos desconexos e às vezes penso em você. Mas pensar em você é tão amplo... Como se pensa em alguém? Mas penso. E sonho. Acho que envelheci. O sol de segunda-feira envelheceu minha pele, vejo-a toda marcada. Mas sei que é chuva que envelhece o avesso da pele.


Perdi o voo e as expectativas que tinha para a viagem. Mas sou mestre de reconstrução e amanhã recomeço tudo de novo. Vou, inclusive, refazer a mala, que já não cabe nos planos iniciais. Todo mundo que me conhece sabe que adoro viajar. Talvez até você saiba, mesmo que eu não saiba ao certo quem você é. O que eu não costumo falar é que sempre penso na viagem como uma possibilidade de morte. Tem uma frase que diz que devemos sair como se fugíssemos de casa. Eu saio de casa como se morresse. Juro. Não é por causa da chuva, não. Nas minhas últimas férias, viajei acompanhada. Talvez por isso não pensasse na morte e não sentisse a passagem sólida do tempo. Estranho viajar sem morrer. Na maioria das vezes, eu encaro esse destino possível com tranquilidade. O que sou até agora basta, mesmo que eu busque o infinito. 


Agora a chuva deu uma trégua, embora o céu permaneça todo cinza. Vou aproveitar e sair para comer, de preferência algo quente. E, já que escrevi para alguém, e alguém é tão amplo, imagino que alguém seja leve, talvez as nuvens brancas que andam sobre os morros. E, já que esta carta não vai para os Correios, que suas palavras se dispersem, como se fossem, também, nuvens. E que amanhã venha o sol.

5 comentários:

Clarice disse...

Acho que temos saudade do tempo que éramos estrelas. Isso deve ser nostalgia.
Transformar isso num texto tão cheio de emoção só pra quem carrega sentimentos para espalhá-los por aí.
Em dias de chuva isso aflora porque deixamos de olhar pra dentro, pra olhar pela janela.
Que cada viagem seja um parto. Calma! Pra nascer de novo e voltar renovada.
Beijinhos

Daniel Borges disse...

me vi escrevendo essa carta enquanto sentando num ônibus indo ao Leblon, chovia... saudade, bjsss

T. disse...

Então vou fazer uma fogueira para você sentir o prazer do calor, fechar o olho e sorrir. Sonhar acordada em cores, luzes e calma... Sonho é destino.
E, mesmo amplo, quando há amor, alguém se conhece no primeiro olhar...

Unknown disse...

Já que sou mineiro... a gente lê seus textos e é como se a gente entrasse num trem e divagasse numa viagem sem volta. http://www.youtube.com/watch?v=gqpQPna65DY

Unknown disse...
Este comentário foi removido pelo autor.