quarta-feira, 15 de maio de 2013

Dos ciclos

Tudo passa... e retorna.


"Mãe,
Comprei uma passagem para Bali e chego amanhã, sem nada além do dinheiro do visto para entrar no país. Você pode me mandar algum dinheiro para eu sobreviver durante a semana? Desculpe, mas eu precisava muito fazer isso. Prometo que na volta vou me comportar e estudar direitinho.
Beijos,
Lian"

Era mais ou menos assim o e-mail que enviei à minha mãe, antes de me acomodar para dormir na única área permitida do aeroporto internacional de Sydney. Lembro que, ao dar o "enter", meu primeiro pensamento foi: "Espero que meus filhos não sejam como eu". E meu segundo pensamento: "Por outro lado... eu sou tão feliz assim!"

Foram muitos os momentos em que me peguei pensando que seria enlouquecedor ter filhos como eu. Isso acontece especialmente quando me lembro das levadezas da infância, como quando eu me pendurava na varanda do prédio ou no dia em que me atirei de cima do edifício para a janela do andar de baixo. Felizmente, meus pais não tinham a angústia de saber meus passos livres e travessuras, embora tantas vezes tivessem que arcar com meus prejuízos, como a mesa e o ventilador do curso de inglês.

Mas é engraçado como é verdadeiro o que todos dizem sobre, com o tempo, nos tornarmos pais dos nossos pais. Tão verdadeiro quanto o fato de sermos, diante deles, crianças eternas. Meus pais sempre esperaram de mim responsabilidade. Hoje eu espero deles o contrário, com a mesma preocupação. Hoje eu critico a alimentação deles, os remédios alopáticos, o excesso de trabalho. E tenho pena de ser filha, não mãe. E não poder começar lá do início, alimentando-os a meu modo. Acontece que meu modo veio, de maneira torta, do modo deles, que me deram o mundo. Assim como minha liberdade vem de suas responsáveis raízes fincadas no chão. É porque eles estendem as redes que eu me lanço.

Os duplos e dúbios papéis. Um dia tive a sensação clara do que é ser filha. Instantaneamente, me imaginei mãe. É isso, então? A tensão entre medo e coragem. Foi da última vez em que minha mãe veio me visitar. Ela quis conhecer a Pedra da Gávea, de que tanto falo: "Dependendo da minha disposição, podemos subir até a metade". Respondi que não, até a metade ela não conseguiria, quem sabe até a cachoeira. Mas deixei a ideia crescer. Não gosto de metades. A ideia crescendo: o topo. O diabinho sussurrava: "é só irmos devagar". Fomos. As subidas. Os degraus. As pequenas escaladas. Em um momento minha mãe escorregou e ficou pendurada apenas pelos braços, agarrada a um gancho na pedra. Ela, que não aprendera na infância a subir em árvores. E que tinha tendinite no ombro. Foi meu primeiro momento real de preocupação materna. Seguiram-se outros. Mas chegamos à carrasqueira, o famoso e temido pedaço de escalada, já quase no topo, que muitos preferem subir munidos de corda e equipamentos de proteção. Orientei-a: "Vou subir e você fica aqui olhando. Depois desço de novo e vou na sua retaguarda". Comecei a subida e notei que a pedra, molhada, estava escorregadia. Pensei novamente em seu ombro. Em sua falta de habilidade em se pendurar nas coisas (Mais tarde ela contaria à minha irmã: "A Lian tem várias técnicas... de macaco!"). Desci e, de uma maneira inédita, propus: "Acho melhor não continuarmos".

É isso, então, a responsabilidade.

Meus amigos brincam que eu traumatizo as pessoas na Pedra da Gávea, pois "obrigo-as" a subirem, mesmo quando ficam apavoradas. Admito que, até então, nunca aceitara voltar com ninguém, apesar de algumas súplicas. Mas é também verdade que a insistência sempre valeu a pena, pois é bonito ver as pessoas transformadas após superarem uma dificuldade. E é bonito fazer parte disso. Mas desta vez era minha mãe, que estava ali comigo. E, naquele momento, ser mãe era como ser filha. E ter mãe era como ter filha. Eu entendi o cuidado extra. O limite. E também o orgulho extremo de ela ter chegado até ali, com toda a perseverança e determinação do mundo. Quem já chegou até a carrasqueira sabe do que falo. "Muito respeito pela sua mãe" - me diria o namorado da minha irmã, ainda na metade daquela mesma trilha.

Os pais nos ensinam. A gente aprende tudo diferente. E ensina de novo.

Minha mãe, que não aprendera a subir em árvore, aprendendo comigo a subir pedra. Um dia talvez eu lhe ensine a andar de bicicleta.

É que o tempo não anda em uma só direção.

Eu, aos meus filhos, gostaria de entregar o mundo. Aos meus pais também.

E, dizendo isso, me vem à cabeça a imagem de uma mãe e um filho que conheci recentemente, na vivência com os índios Yawalapiti. Era uma artista plástica francesa, chamada Naïg, e seu filho, de uns doze ou treze anos, chamado Jean. Os dois faziam juntos uma viagem de cinco meses pelo Brasil. E, apesar de juntos, não ficavam grudados. Naïg passava o dia observando e pintando a vida na aldeia. Jean era o único branco que acordava cedinho junto com os índios e ia tomar banho gelado no rio. Sem dizer uma palavra, vivia a vida daquele povo. Ficou muito amigo de Xé, o índio sorridente e mais calado ali presente. Nenhum dos dois falava. Mas passavam o dia correndo um atrás do outro, brincando e rindo. No último dia era tão bonito olhar para Jean e ver aquele menino loiro com uma pena colorida na cabeça, transformado em índio.

Isto eu queria para meus filhos: a terra, a água, as raízes. Sem a velha ideia burguesa de ter que comprar um terreno para ter um pouco de paz isolada do mundo. Eu não. Quero para eles o mundo inteiro. Para que eles saibam de onde vieram. Plantar, colher, comer. O ciclo.

Eu quero apenas o tempo não-linear para doar o mundo aos meus filhos. E devolvê-lo aos meus pais.

E, nesse mundo reconquistado, ensinar minha mãe a subir em árvores e escalar pedras. E, quando ela se lançar em voos de liberdade, poder segurar as redes e ser raiz.

Nós sempre voltamos.

quinta-feira, 2 de maio de 2013

Sangrar


Sangro.

Assim, neste exato momento. Deste sangue que desce por cinco dias, todo mês.

E, enquanto torno isto público, imagino alguns leitores pensando: "Você poderia ter me poupado desse detalhe!" O mesmo comentário que sempre fazem quando alguém, por exemplo, resolve anunciar que vai "fazer xixi".

A sociedade asséptica, que renega a própria carne.

Ironicamente, eu tinha uma colega, na turma de teatro, que costumava me dizer: "Lian, eu não te imagino fazendo cocô. Eu consigo imaginar todo mundo fazendo cocô, menos você, porque você é tão delicada!" Outro amigo completou dizendo que eu fazia bolhas de sabão. Rimos todos da piada.

Logo eu, que sangro tanto.

Mas, se hoje falo em sangue, é porque tenho me deixado sangrar por todos os caminhos. Aprendi a aprender com ele. Especialmente a fluidez.

Passei uma semana convivendo com índios da tribo Yawalapiti, do Xingu. No contato inicial, meu primeiro espanto: a língua deles me soava exatamente como as línguas chinesas. Eu via neles meus parentes, como se seus corpos fossem transparentes e de repente toda a verdade transparecesse. Então somos um só povo. Eu já sabia. Soube de novo.

O mesmo sangue humano. A mesma seiva terrena.

E fui vivendo lá, tomando banho no rio, dançando, brincando, comendo milho assado na fogueira e ralando mandioca pra fazer beiju. Também comecei a aprender sobre seus costumes, entre eles, a sangria. Funciona assim: eles têm um objeto, uma arranhadeira, feita de cabaça com dentes do peixe cachorra, se não me engano. Com ele, arranham o corpo inteiro ou partes específicas. Ao sangue que sai, misturam extratos de raízes diversas, cada qual com uma finalidade. Os garotos, quando entram na puberdade, passam por um período de reclusão, que pode durar até cinco anos, para se tornarem lutadores. Neste período, podem se arranhar mais de uma vez ao dia, utilizando raízes que os fortificam. Uma delas, brava, arde e dá febre durante dias. O índio que ousa enfrentá-la sai um grande lutador.

Mas, mais do que passar medicamentos efetivos por entrarem diretamente na corrente sanguínea, a prática da sangria tem também um sentido espiritual. A purificação do sangue que sai. A proteção do mundo que entra. O atravessamento, mais uma vez.

Então eu me recordo de uma noite de lua cheia, em dezembro do ano passado. Eu fora recebida no Pantanal por um casal: Marcelo, indígena da tribo Kadiwéu, casado com Mirjam, uma bela suíça que me explicava sobre a terra e as forças da natureza. Era ela que, em torno de uma fogueira, me falava sobre o privilégio de ser mulher e poder sangrar todo mês. Ela chegou a mencionar que os homens, que não tinham o mesmo dote, acabavam tendo que provocar a sangria, mas eu, que àquela época não conhecia a prática, não entendi. Foi isto que ela me explicou: que mensalmente nosso corpo se abria. Com essa abertura, também a outra, espiritual, ocorria. E também isto: que nós, mulheres, mesmo quando não estamos grávidas, estamos. Somos sempre essa potência de terra. Daí eu intuo que, mesmo sem filhos, somos sempre mães.

E acho bonito poder pensar e dizer isso logo agora, que é mês das mães. E, por acaso, também é o dia, o dia exato da minha mãe. E também é meu mês. Aliás, eu também nasci no dia das mães. E por aí vão os milhares de fios que me tecem à essência da maternidade.

A gente gesta. A gente gera. A gente sangra.

Parte do mesmo ato.

Todo do mesmo parto.