sábado, 27 de dezembro de 2014

Do ano



Facebook fez uma retrospectiva do meu ano: constavam ali as fotos mais populares, aquelas com mais curtidas. Mas não constava meu ano.

Ele não percebeu que a essência de 2014 foram as "medidas impopulares".

Pouco antes do meu aniversário, minha terapeuta tirou tarô para mim. A primeira carta a sair foi a da morte.

A morte - a grande impopular - reinou. Eu tive que morrer diversas vezes, para perder padrões que carregava. Tive que deixar morrer um modo específico de estar no mundo. Matei em mim pessoas que eu amava. Não o Amor, que ele vive sempre.

Foi um ano de mortes em todos os sentidos. Aquelas de fim de ciclo e aquelas inexplicáveis. Foi um ano de suicídios: os que não conseguiram confrontar a própria sombra. Foi um ano de separações: os que não conseguiram confrontar a sombra do outro. Ou melhor: a própria sombra que se vê no espelho do outro.

Mas só depois de morrer muito a gente entende que a vida é muito forte.

Por isso o mais bonito foi a redescoberta das amizades.

Porque quando cada um abaixou suas espadas e seus escudos e suas máscaras e suas vestimentas, aí pudemos nos enxergar. Cada um com sua luz e sua sombra. E enxergar a sombra do outro - e ser enxergado - confirmou a solidez do encontro. E de repente minhas amizades de anos ganharam, em um ano, quilômetros de profundidade.

E é por causa desses - os verdadeiros amigos - que não consegui lamentar as mortes. Elas eram apenas a sombra que dava contorno à luz. Ficou mais fácil enxergar: a vida. Há muita vida.

Então eu digo aos meus amigos: Agora nós vamos juntos, nós vamos de mãos dadas. Eu aceito a sua sombra, que te faz pessoa inteira e humana. E eu lhe permito ver, também, o oceano que sou. Com as minhas profundezas.

Neste ano aprendemos que não temos o controle de nada. Mas temos uns aos outros.

E isso é tudo.


terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Da experiência do Sagrado



Era uma tarde de outono em Verona. Chuviscava de leve, mas fazia muito frio. Eu andava a esmo. Havia decidido que minha missão naqueles dias era comer, só isso. Mas àquela altura já havia almoçado e acabei ficando meio perdida. Como fico perdida sempre que não tem sol.

Resolvi que precisava entrar em um lugar, qualquer lugar - para me aquecer e escrever no meu caderninho.

Então entrei em uma igreja: a Chiesa di San Lorenzo.

Havia um som que vinha de sua lateral. Vozes femininas. Repetiam algo como uma oração ou um mantra. Eu não podia vê-las, mas, em minha falta de experiência com igrejas, pensei que fosse uma missa.

Perguntei-me, por um instante, se eu poderia estar ali, em minha maneira pagã, só para me aquecer e escrever. E logo me respondi que sim: "Se essa é a casa de Deus, então tudo é permitido". E imediatamente me dei conta de que meu raciocínio era praticamente o inverso de Dostoievski, que anunciara que "se Deus não existe, tudo é permitido". Achei graça disso.

É que eu, que me declaro ateia, só poderia conceber um Deus que não tivesse leis humanas. Que não escolhesse uns em detrimento de outros. Que não bradasse regras. Que não exigisse ser cultuado.

Eu só aceitaria um Deus que recebesse qualquer um em sua casa, ainda que fosse uma pessoa perdida em meio ao frio, que não acreditasse nele e só quisesse um lugar para escrever ideias mundanas.

Então me sentei em um banco lá no fundo, abri meu caderninho e tentei escrever.

Mas aquele som que me soava como um mantra, aquelas vozes femininas repetindo as mesmas frases continuamente, aquela vibração em palavras que eu não compreendia... De repente tudo aquilo me hipnotizou. Larguei o caderno e fiquei ali, só estando ali.

Até que, não sei quanto tempo se passou, aquelas vozes se calaram. Ouvi uma movimentação de pessoas se levantando. Pensei que fosse terminar a missa. Mas não. Agora que ela começaria. As freiras, donas daquelas vozes, apareceram à vista. Também um padre, que se pôs no altar. E pessoas. Fiéis.

Fiquei sem saber o que fazer. Pensei em levantar, ir embora. Mas fiquei.

Assisti à missa inteira. Estava eu, também, inteira.

Acho que me ajudou ouvir uma missa em outra língua, sem entender as palavras e as regras demasiadamente humanas.

Naquele momento, aceitei Deus.

Mas só aceitei aquele Deus que me aceita.





sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Guariroba



A guariroba é uma espécie de palmito amargo, bem amargo, lá da minha terra.

Aqui no sudeste pouca gente a conhece, a não ser pela breve referência na música do Gil. Mas meu pai, como bom chinês goiano, sempre soube apreciá-la. Foi ele quem, na minha infância, me apresentou à guariroba. Pra falar bem a verdade, ele dispensou apresentações. Eu cheguei à mesa do almoço e lá estava ela, cortada em grandes rodelas, em uma travessa. Pensei que fosse palmito e, encantada pela sua abundância, pus logo um pedaço imenso na boca. Meu pai não disse nada. Ficou olhando, divertido, para minha cara de pavor, assim que senti seu sabor amargo.

Foi assim que descobri a existência da guariroba. Uma decepção (ou, sendo mais dramática, um trauma) grande o suficiente para que eu nunca tenha esquecido aquele dia.

Durante toda a minha vida, desde então, passei a recusá-la, até que, cerca de dois anos atrás, vi minha mãe colocando um pouquinho em seu prato.

- Ué, mãe, você come guariroba?

- Resolvi comer. Estou aprendendo a gostar aos poucos.

Simples assim. E, inspirada pela minha mãe, resolvi aprender a gostar de guariroba também. Mais: resolvi aprender a aceitar o amargor. Pois me dei conta disso: que eu colocava uma comida na boca e, ao perceber o amargo, imediatamente desqualificava a comida.

Mas e se não fosse errado ser amargo?

É claro que não passei a amar guariroba de uma hora para outra. Mas, sempre que tinha oportunidade, comia um pouquinho. E então passava pelo processo, esse diálogo interno tão frequente:

- É ruim.

- É ruim por quê?

- É amargo.

- Qual o problema em ser amargo? O amargo é um sabor como todos os outros.

- É mesmo.

E pronto. De lá pra cá, aprendi a gostar de guariroba. Assim, com um questionamento e uma decisão.

É que o amargor nunca é só da guariroba. E a vida nunca é só doce. E nem deve ser.

Eu nasci gostando da luz e me forcei a desbravar o escuro. Nasci gostando do conforto, mas tive que aceitar a dor. Nasci gostando do doce, mas aprendi a encarar o amargo. Por isso hoje gosto mais ainda da luz, do conforto e do doce, em sua forma óbvia e em seu contrário. E a vida passou a ter mais intensidade, desde que aceitei todos os seus sabores.

Junto com a guariroba, passei a apreciar também o jiló. E, graças à aceitação do amargor, tive essa deliciosa descoberta:

- O jiló é doce!




segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Companhia de Transportes de Carruagem



Entrando na vila, de manhã, encontro um senhor desconhecido. Ele passa devagar e observando tudo. Parece especialmente curioso em relação à casa três, cheia de jovens, janelas abertas. Cumprimentamo-nos. Ele pergunta se moro aqui, confirmo. Há dois anos, digo, sem perceber que minto, pois moro há mais de três e nem notara a passagem quase covarde do tempo.

Então ele me conta, visivelmente emocionado, que nasceu aqui. "A casa ainda é de minha mãe, mas..." Sua mãe tem oitenta e oito anos, está hospitalizada. "Eu e meus irmãos estamos fazendo o inventário". Paramos diante de sua casa, uma das primeiras da vila, cor de rosa. Ele aponta a inscrição presente em todas as fachadas, com exceção da minha. "Está vendo aquelas letras? Dois Cs e um T. Sabe o que aquilo quer dizer? Companhia de Transportes de Carruagem. Nessa vila moravam todos os funcionários de transporte do Palácio do Catete".

Ele observa. Eu absorvo. O tempo repentinamente parado em um espanto duplo. "Aqui era muito bom de morar" - ele quebra o silêncio - "ainda é". " Ali atrás tem a delegacia. Na época eles mantinham celas com prisioneiros. De vez em quando fugia um e passava sobre essas casas daqui. Mas minha casa era do outro lado, então não havia nada".

"A minha casa é aquela ali" - aponto. "A única de tijolinhos, porque infelizmente foi transformada antes do tombamento". "Ahhhhh... sabe quem morava lá?"- ele se empolga. Fico na expectativa. Vou conhecer um pouco da história de onde vivo e torço, lá no fundo, para não saber sobre tragédias e fantasmas. "Ali quem morava era a Dalva, uma mulher maravilhosa, incrível! Depois ela vendeu a casa para um casal, eles venderam para outra pessoa... acho que eles nunca moraram lá". E é só isso. Só a Dalva. "Tem certeza de que ela não é mais a proprietária?"- pergunto. Ele garante que não. "Porque acho que até hoje nós recebemos correspondências para ela" - tento lembrar, sabendo que este nome não me é estranho.

Depois nos despedimos e eu sigo para minha casa, esta que um dia pertenceu a Dalva, uma mulher maravilhosa, incrível. E é espantoso perceber que em meio à velocidade da vida, parte da gente fica sempre um pouco. Na lembrança de um senhor de quase setenta anos que visita a casa de infância. Nas cartas que insistem em chegar, apesar da mudança de endereço. Em um tempo que, dentro do tempo, insiste em passar de carruagem.


quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Meus pés de chuchu



- Você colhe o que planta. Se plantar abobrinha, certamente não vai colher chuchu. - dizia outro dia meu professor de meditação.

Pois não é que, contrariando essa sabedoria óbvia, eu bem tenho colhido muitos chuchus inesperados? Se tem algo que aprendi neste ano maluco foi isso: aceitar a imprevisibilidade. Plantar, cuidar e regar da melhor maneira que posso. Mas receber de braços abertos o que nascer daí.

Eu tenho meus planos. A terra tem seus planos. A semente tem seus planos.

E a vida se realiza nessa intersecção.

Há algum tempo dei pra cultivar plantinhas na floreira da janela. Começou com um vasinho de hortelã que ganhei de um amigo querido. Depois fui comprando e ganhando outras mais: manjericão, erva doce, lantana, capim-santo. Então, quando estava na Chapada dos Veadeiros, cismei com açafrão-da-terra, que os caboclos queimavam na fogueira e deixava um cheiro delicioso no ar. Resolvi que precisava daquilo na minha casa, e um moço pegou pra mim várias daquelas "batatinhas", que é como eles as chamavam, cheias de raízes. Trouxe-as para casa como um tesouro, comprei um grande vaso e plantei-as lá. Tornou-se um vaso de esperança, que eu regava diariamente, sem saber se aquelas raízes sob a terra estariam realmente a se desenvolver.

Passei alguns meses regando aquele vaso, sem que nada despontasse da terra. Fé é isso: enxergar nos subterrâneos que os olhos não alcançam. E, enquanto esperava meu açafrão nascer, ia enfeitando o vaso com outros objetos: uma pedrinha, dois cataventos e um pregador de roupa pintado, parte do projeto "Pregadores do Amor", da artista Sophia Pinheiro. Gosto de pensar que plantei amor e vento. E que é a partir daí que tudo vai fluir, para que eu colha apenas o que quiser nascer.

Pois há poucas semanas algo quis nascer. São plantas variadas, que não consigo identificar. Honestamente não sei se alguma delas é o tão esperado açafrão. Talvez seja apenas mato.

Mas então terei um pé de mato.

Assim tem sido minha vida: cultivando às cegas e com fé a potência do que vier, sabendo que sou responsável por tudo e não tenho o controle de nada.

Plantando açafrões e colhendo chuchus. Assim, alegremente. Aceitando a convergência dos meus planos com os da Terra e da Semente.


quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Ano do Cavalo: Manual de sobrevivência




O importante é nos mantermos vivos.

E, estando vivos, confiar na vida.

Nada mais do que isso: manter-se vivo e se deixar fluir com o Universo.

Ano passado foi o Ano da Serpente: período que nos obrigou a mergulhar pelas profundezas. Essas, tão nossas, mas que nos recusamos a ver. É confortável andar sempre pelo caminho da luz, mas de vez em quando é necessário sair do espaço de conforto. A Serpente nos obrigou a encarar a escuridão. Cavamos túneis escuros e profundos, em um caminho doloroso. E tivemos contato com tudo aquilo que escondêramos no fundo mais fundo.

Então, em 2014, chega o Cavalo a galope. Com seu passo apressado, desenterrando tudo aquilo que havíamos começado a descobrir. O Ano do Cavalo continua revirando todas as camadas com que revestimos as verdades duras. É o ano de caírem as máscaras. Tudo que não for necessário, essencial e verdadeiro ruirá. Eu vejo acontecer, diante de meus olhos.

E tenho minhas perdas. Tantas e tão dolorosas. E tenho meus sustos. E meu fascínio. Porque, desde que comecei a entender minha vida como um pequeno pedaço dessa Vida imensa que é tão mais ampla, de repente faz um pouco de sentido. Eu no meio do furacão, sendo obrigada a me desapegar de pessoas e ideias que eu construíra. De repente me vejo sem minhas bengalas e meus escudos e minhas máscaras.

Nua e ainda de pé.

Aprendi isso: que nada mais posso fazer senão montar o Cavalo. Aceitá-lo. Fluir com ele e me permitir enxergar tudo aquilo que ele me mostra. É menos doloroso, quando não lutamos contra.

Então eu continuo galopando este ano e vendo ruir tudo que em mim não é vida e verdade. E aceitando a energia do Cavalo, que é forte e que faz tudo tremer. E pedindo aos meus amigos que se mantenham vivos e que enfrentem as rupturas de frente e com amor. Porque o que restar há de ser sólido e necessário. É da verdade que nascerá o novo.

Quem viver verá.


sábado, 12 de julho de 2014

Com açúcar, com afeto



Foi em Búzios que começou meu vício por açaí.

O açaí lá é como na maioria das cidades pequenas: só se sente o gosto do xarope, dulcíssimo. E colocam, por cima, todas as tranqueiras possíveis: calda de morango, leite condensado, granulado de chocolate, gummy bears.

O meu era açaí com paçoca.

Mas tinha gosto de caminhadas solitárias e infinitas, de pele salgada, de cabelo secando ao sol. Tinha gosto de mergulhar no mar e subir pedras. De procurar praias escondidas, de batizar pedaços de areia que eu jurava serem só meus.

De silêncio.

Quando voltei ao Rio, já era quase Carnaval. E continuei buscando aquele sabor durante algum tempo. Paçoca, nem sempre tinha. Mas açaí cheio de xarope eu encontrava em qualquer esquina e tomava duas, três vezes ao dia.

Lembro o dia em que ele chegou. Olhou para o copo na minha mão e perguntou:

- O que é isso?

- Açaí. Quer?

Ele quis. Tomou uma colherada avidamente. Eu ofereci o copo inteiro. Ele quis. Eu ofereci a granola do armário. Ele quis também.

E como eu queria que ele quisesse tudo!

Com o tempo fui depurando meu gosto, descobrindo os lugares que tinham os melhores açaís (cortei a paçoca, claro), sabendo reconhecer a textura certa:

- Se brilha, é só xarope com gelo. O verdadeiro açaí tem que ser aveludado.

Até que descobri o melhor. Passei a tomá-lo todas as noites. Sem xarope, só com açúcar. Pouco açúcar, sempre.

- Granola ou tapioca?

- Nada disso, obrigada.

Ele me acompanhava nisso. Buscava comigo os melhores lugares, fazia experimentações. Ele, que tinha mania de perfeição, um dia me falou:

- Agora você tem que aprender a tomar açaí sem açúcar, como fazem no Norte.

Eu, que não gosto que me digam o que fazer, rebati:

- Eu não tenho que nada.

E quando começamos a amargar, seguimos cada um para um lado.

Há coisas sem as quais pensamos que não podemos viver. No entanto, estamos aqui, vivos e até felizes. Às vezes felizes por estarmos vivos. Às vezes surpresos por estarmos felizes.

Eu sei que continuo aqui e tomando meu açaí todas as noites. Houve uma delas em que eu estava com uma amiga em casa e me lembrei do açaí guardado na geladeira. Estava sem açúcar, pois meu intuito era tomá-lo com mel. Antes de colocá-lo, porém, resolvi provar uma colherada.

- Ué! É bom!

E uma noite assim, de repente, descobri que não precisava mais do açúcar no açaí.

Mas era mais doce com ele.


quarta-feira, 9 de julho de 2014

A galinha Marilou



Tenho uma amiga que é defensora da natureza. Assim, das grandes e pequenas causas. Onde tem ser vivo sendo agredido, lá vai ela comprar briga. Outro dia comprou briga com a vizinha da frente, que derrubou todas as árvores do terreno, para construir uma casinha que não justificava tanta destruição. Eram árvores nativas, centenárias. Comprou briga também com o secretário de meio ambiente, que assinou a autorização. Reuniu-se com ele, pesquisou todas as leis, ameaçou, fez barulho. Ela é assim, uma briguenta do bem. E por isso nos damos tão bem.

Pois há um tempo ela encontrou uma galinha perto de sua casa. Era galinha de macumba, tinha as pernas amarradas e estava bem frágil. Então minha amiga reuniu-se com uma vizinha (não a predadora de árvores, claro), resgatou a galinha, chamou um veterinário. Só depois soube pelos vizinhos que a galinha estava ali, amarrada, havia três dias.

- E ninguém fez nada??! - indignou-se.

Fazer nada não faz parte de seu repertório de ações.

Hoje é sua vizinha que cria a galinha Marilou, que virou de estimação e é bem cuidada. De vez em quando minha amiga passa pra ver a galinha e me dá notícias dela.

Ontem nos encontramos para tomar um suco verde, antes da aula de yoga. Fazia um mês que não nos víamos, e um mês longe de uma amizade dessas é quase eternidade.

- O ano do cavalo está uma loucura! - exclamamos, atropeladas.

E depois saímos à procura de uma televisão, para ver o início do jogo Argentina X Holanda, já que temos um tempinho antes da aula. Mal assistimos, tantos são os assuntos para colocar em dia. De repente ela se empolga:

- Lian, lembra da Marilou?! Acredita que ela virou uma pitonisa?!

- Pita o quê?

- Ela adivinha o resultado de todos os jogos da Copa! Até agora não errou nenhum!

- Como assim?

- A minha vizinha coloca dois papeis, um com o nome de cada país. E depois coloca comida por cima. Ela sempre bica a comida do país que vai ganhar.

- Mesmo? E quem vai ganhar este jogo?

Ela manda uma mensagem para a dona de Marilou e recebe a resposta: Argentina.

Acaba o primeiro tempo. Zero a zero. Temos que ir pra aula de yoga, mas já vou contente com a previsão de Marilou:

- Tomara que ela esteja certa, estou torcendo pela Argentina.

Entramos na aula. E de repente estamos tão ocupadas em colocar a perna em cima do ombro ou em controlar partes do corpo que eu nem sabia que existiam, que ficam lá fora o mundo girando e a bola rolando. Mas mal a aula acaba, me lembro do jogo, mais excitada por Marilou do que pela Copa.

- Precisamos ver o resultado!

A primeira busca no google do meu celular já é pela tabela da Copa. No início não entendo muito. Aparece Brasil X Holanda. Então me dou conta: esse será o próximo jogo. O que quer dizer que... Argentina ganhou!! E não me contenho mais de alegria e fascínio, pela Copa toda cheia de surpresas, mas mais, muito mais por Marilou, a galinha de macumba que virou pitonisa.

- Marilou estava certa! Marilou adivinha tudo!

E começamos a comemorar e contar a história espafalhafatosamente para a professora, que explica:

- Essa galinha quase morreu. Ela viu Deus. Então...

E encolhe os ombros.

E eu vou embora pensando que há mais mistérios entre o céu e a terra do que supõe uma galinha. Ou talvez não. Talvez apenas esteja tudo contido na simplicidade do ovo.


quarta-feira, 2 de julho de 2014

Só futebol



Sou uma filha de Roberto Baggio.

A Copa de 94, que foi a primeira que acompanhei na vida, definiu toda minha maneira de torcer no futebol (sim, sou dessas que só assistem ao esporte de quatro em quatro anos). Lembro de, naquele ano, perguntar ao meu pai: "Que história é essa de Tetra, de que tanto falam?" Ele explicou que o Brasil havia ganhado o mundial três vezes. Se ganhasse de novo, seria o primeiro do mundo a ser tetracampeão. O primeiro do mundo! Aquilo me pareceu tão emocionante!

Desde então busco aquele sentimento. O coração pulando pra fora do peito, é essa a vitória. Por isso torço sempre por empate. Empate não: decisão nos pênaltis. Mais do que isso: desde o Penta, torço para o Brasil esperar um pouquinho. Perder, pode-se dizer. Mas temporariamente, só até outro país nos alcançar e, aí sim, disputarmos o Hexa. O primeiro do mundo. Com emoção. Culpa de Baggio, esse vício.

Mas este ano não.

Este ano desejei a vitória desde sempre, desejei a festa e a alegria. Só para torcer contra os que torceram contra. Não as lutas justas, aquelas legítimas que sabem que na Copa, como em qualquer outra ocasião, o grande capital se sobrepõe aos direitos da população pobre, que perde sempre. Mas quis torcer contra o mau-humor burguês, o complexo de vira-latismo, o ódio que vejo se espalhar. Eu quis que a gente se amasse, que, no futebol que fosse, a gente caminhasse junto por um dia.

Acontece que, torcendo desta vez de verdade para o Brasil, comecei a torcer junto para nossos irmãos latino-americanos e africanos. É que temos uma história em comum, uma história de iguais.E é só futebol. E ao mesmo tempo não é só futebol, pois que em tudo há uma disputa simbólica. E eu acho bonito que haja um campo, mesmo que seja o gramado, em que a gente possa dizer que estamos juntos e não, não seremos mais colonizados. Já o somos economicamente, culturalmente, e mesmo nas relações internas entre centro e periferia. É só futebol e não mata a fome. Mas já é futebol e a gente tem fome de muita coisa.

E o mais bonito disso tudo tem sido sair às ruas e parar na frente de uma tv qualquer e torcer junto, ou pro time oposto, mas junto, mas com respeito, com reconhecimento. E quando, no dia do jogo Brasil X Chile, lamentei que acabara a "hermandade", meu amigo chileno veio dizer que não, que ela não acaba. Que haviam sido eliminados por nós no futebol, mas que o amor permanecia.

Ontem parei na frente de outra tv, no quiosque da praia, para acompanhar o jogo Argentina X Suíça. O moço do quiosque só se conformou por eu torcer para a Argentina, porque expliquei que esperava uma final Argentina X Brasil. Mas não expliquei que não é pela rivalidade, mas porque acho que devemos caminhar com nossos irmãos, até o final. E pra mim caminhar com os irmãos tem a ver com alegria. Tem a ver com estar junto com nosso técnico e jogadores, mesmo que eles errem o gol. Estar no mesmo time já é para mim a vitória.

Para que fique mais do futebol quando já não houver mais futebol.



quarta-feira, 11 de junho de 2014

"Amores perros"



Há alguns anos tentei uma reaproximação com um antigo namorado: meu primeiro namorado, para ser mais precisa. Outros já tinham passado pela minha vida e, desde que nos separamos, nunca mais havíamos tido contato. Talvez por medo da morte, talvez pela necessidade de me agarrar às raízes, talvez pelo luto que eu não me permitira viver no tempo certo, o fato é que aquela falta voltou a doer, como presença constante.

Eu mal lembrava o que havia nos separado, mas sei que fui embora de uma maneira brusca, única forma que encontrei de romper aquele laço. E assim, anos depois, tentava voltar. Também bruscamente.

No início ele teve medo: as portas todas trancadas. Ele tinha lá sua razão. Eu também tinha as minhas. Dessas razões que, como disse Pascal, a própria razão desconhece. Então fui aos poucos encontrando frestas. Conseguimos trocar palavras. Alguns encontros. Mágoas que haviam ficado do lado de lá, indigestas.

Até que: uma disposição. Um caminho. Como vivíamos em cidades diferentes, trocamos e-mails, em uma tentativa de voltar a conhecer um ao outro. Expectativas. Perguntas que eu não sabia responder. Insinuações sobre o que ele esperava que eu fosse. Eu entendo: eu deveria ser pelo menos inofensiva, domesticável, não esse ser monstruoso que tem arroubos de desejos e de explosões e de voos.

Por isso ele me escreveu um dia: havia ido à festa de aniversário da Vitória Serafim, namorada do irmão, que, com seu jeito dedicado, discreto e "..." (esqueci a terceira palavra, que pertence ao mesmo conjunto), conquistara até a mãe ciumenta. "Mãe" e "ciumenta" na mesma frase já são palavras que me dão arrepios. Mas o pior era a sugestão que eu lia, diante de todo contexto. Era isso que ele esperava de mim: que fosse dedicada, discreta e não sei mais o quê. Nas entrelinhas dessas três, eu lia uma quarta palavra: submissa.

Eu até me considero dedicada. Eu até posso ser discreta. Mas, definitivamente, não poderia estar ao lado de um homem que esperasse aquilo de mim.

E eu tentei, por mais um tempo, essa aproximação. Tentei quebrar as barreiras e os medos. Mas, a cada dia que acordava pela manhã, repetia para mim: "Eu jamais serei uma Vitória Serafim!" E aquela frase soava já como vitória. Ou como catarse. E eu me sentia bem. E me sentia plena. E gostava de repetir aquele nome, que soava quase como personagem de novela mexicana, o que fazia com que o som reverberasse de jeito mais prazeroso. Eu dizia isso em voz alta, vibrante, todos todos os dias.

É claro que a aproximação definitiva não aconteceu. Mas eu continuei  me lembrando e repetindo: "Eu jamais serei uma Vitória Serafim!". Isso me faz lembrar quem eu sou. Às vezes dedicada. Às vezes desleixada. Discreta ou espalhafatosa. Mas plena. Mas eu. Com potência de amar com todas as minhas células. Mas também de ferir, como somos todos nós.

Amar é risco. Amar é perigoso. Mas que me permitam amar sem focinheiras. E que me amem assim, canina. Com minha lealdade e meus dentes.


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Semente



Sempre acontece: Perguntam meu email. E, diante do "hotmail" na resposta, olham-me como se eu tivesse surgido diretamente da pre-historia. Alguns sugerem: "Por que você não troca pro gmail?" Indago a diferença. Explicam-me sobre configurações, arquivos, capacidade de enviar e armazenar dados, coisas assim.
E eu juro que ainda não consigo enxergar a distinção.
Haverá alguma tecnologia que me permita receber mais amor? Doar mais amor? Haverá algum meio que me permita trocar com verdade - ou tocar de verdade? E, se eu adotar o tal do gmail, que tanto me dizem ser mais avançado, vou receber mais mensagens de coração daqueles que amo? E vou alcançar com mais profundidade os seus corações, também? E entenderão melhor o que digo - quando digo? Entenderão o que não digo? Compreenderão o meu silêncio?
Recentemente, em um congresso de comunicação, um dos pesquisadores* falou a seguinte frase, que ficou reverberando em minha alma: "Quando comparo tecnologias, eu não oponho o Windows ao Linux, pois ambos contêm a mesma lógica. Eu o oponho ao machado".
Pois eu aguardo essa tecnologia - uma que seja potente: Que seja o machado a quebrar paredes. Que seja ponte. Que seja semente.

* O pesquisador em questão é Edilson Cazeloto, durante apresentação do trabalho "Sociabilidades gerenciadas: o discurso tecnológico e a despotencialização do imaginário" 

sexta-feira, 23 de maio de 2014

Divagações de um aeroporto



Sentada em um aeroporto, esperando um avião que me levaria para longe daquilo que é o nosso espaço. Para longe da vila onde nos encontramos, as ruas onde andamos de mãos dadas, a cama que compartilhamos, entre chás e granolas e açaís. E de repente, nesse espaço impessoal, embora cheio de pessoas com suas malas e histórias, me vem sua imagem. Eu vejo você dormindo na cama, como via tantas vezes enquanto você dormia. E eu me espantava e me alegrava com sua presença. E você nunca saberá o quanto torci para que os mosquitos chatos me atacassem durante a noite, só para te poupar das picadas. E depois eu me lembro de outras pessoas, aquelas que eu não conhecia e que estavam em um ambiente – eu nunca freqüentei esse tipo de ambiente – mas imagino que também tão frio e impessoal quanto esse aeroporto. E também tão cheio de pessoas, pessoas quentes, com suas histórias. Sei que a notícia nos sufocou por muito tempo: uma boate que pegou fogo no Rio Grande do Sul. E que os celulares dos jovens ficavam tocando, com ligações de mães desesperadas pelos filhos que não voltariam pra casa. E, disso me lembro bem, disseram que os corpos eram encontrados unidos, abraçados uns aos outros, como estão abraçados tantos corpos, em tantos escombros, em tantos acidentes em todas as épocas e lugares. E me vem novamente você. E depois me vem o mundo que desaba. Eu nunca vi tanto medo por aí. E nunca vi tão à solta e despudoradamente os discursos de ódio. Ao mesmo tempo, as lutas honestas e a busca por um amor livre e sem rédeas. E os questionamentos. E os atropelamentos. E as máscaras que caem. Eu vejo um tempo de mudanças pela frente. Eu vejo desabarem, uma por uma, as peças do dominó. E quem sou eu para lutar contra, quando o universo se revolve e se revolta? Então eu vejo que a gente se destruirá até que todas as estruturas frágeis – as estruturas falsas – caiam por terra. Eu vejo tudo. Não sem susto e não sem dor.

Mas vejo, em meio aos escombros, eu e você abraçados.


Quando tudo que é falso ruir, restará o Amor.


sexta-feira, 9 de maio de 2014

Um poeta



Encontrei Roberto em frente ao metrô General Osório, tentando entregar cópias de poesias próprias, em troca de algum dinheiro. Pele negra, barba branca, boné com a bandeira do Brasil.

Dei uma nota de dois reais e, antes que eu me desse conta, ele contava sobre sua vida e eu escutava, curiosa que sou. 

Ele morara no Bairro da Liberdade, em São Paulo, durante vários anos. Conhecera muitos chineses e japoneses. Fora professor de karatê. Depois veio viver no Rio, passou a trabalhar para o tráfico, foi preso. Agora ele é morador de rua e tenta recomeçar a vida. Seu ofício: escrever poesia. 

- Eu vou me casar com uma japonesa! - ele me contou. Por um instante me perguntei se ele não estaria me cantando, mas não. Ele prosseguiu com a história:

- Eu sou um morador de rua, então ninguém olha pra mim. Um dia essa japonesa me olhou. É uma senhora, porque eu não tenho idade pra menina, né? Ela me olhou... a gente sabe quando alguém nos olha paquerando. Aí eu fui atrás dela. Mas descobri que ela tinha um marido. Não dava. Ela é dona de uma pastelaria, ali, na rua X, em Copacabana. Eu ia, comia um pastel, ficava sentado lá, a gente trocava olhares. Mas ela tinha que pedir o divórcio, senão não ia dar, né? Mas olha o que aconteceu: no outro dia o marido dela morreu. Não sei se alguém contou sobre nós dois, se ela pediu o divórcio, porque ele morreu do coração. Aí eu fui lá, ela estava chorando. Eu chorei também. Mas não acontece nada! Tem que acontecer.

Eu o escutava quase calada, enxugando a chuva de saliva que ele cuspia sobre meu rosto. E ele continuava a contar, empolgado com a atenção que encontrara:

- Porque ninguém me olha, então, se ela me olhou com amor, eu tenho que beijar os pés dela. Posso fazer tudo, limpar o banheiro da pastelaria dela, varrer o chão. Ela é uma empresária, eu não tenho nada. Ela é muito mais merecedora do que eu. Então eu quero casar com ela e ajudar no que for preciso. Eu vou morrer antes dela, vou ser o segundo marido que ela vai enterrar.

- Como você sabe disso?

- Eu tenho câncer na cabeça, olha. - tirou o boné e me mostrou o calo na parte de cima da testa. - Isso é câncer no crânio, não é no cérebro, é no osso.

- Mas você não passa mal por causa disso?

- Todos os dias. Eu sinto muita dor.

- E se resolve com cirurgia?

- Eu já peguei uma guia do INCA, tem uma fila... Mas joguei a guia fora, fiquei com medo. Mas sabe de uma coisa? Eu tive uma visão, muitos anos atrás. E me vi casado, morando em um apartamento. Foi Deus que me contou, é uma visão de Deus isso. Então, se até hoje eu não fui casado e moro na rua, quer dizer que eu não vou morrer tão cedo. Antes, vou viver o que está prometido, Deus não mente. Olha que ironia, convivi com tantos japoneses há mais de trinta anos e vou me casar com uma japonesa agora. 

Antes de me despedir, aconselho-o a continuar frequentando a pastelaria:

- mas tenha calma, dê o tempo dela.

Ele agradece e pergunta que poesia eu quero levar.

Poesia, meu caro. Eu só quero poesia.




terça-feira, 29 de abril de 2014

O Vento



Eu saía de um restaurante em Brasília, quando uma moça me parou:

- Lian?

- Isso - respondi, confusa, sem conhecê-la.

- Eu vi que você postou na internet que precisava de carona para voltar de Alto Paraíso. Te reconheci passando. Eu volto no mesmo dia que você, podemos combinar.

Trocamos telefones e fui embora achando incrível aquilo. Ainda por cima, chamava-se Brisa, a garota. Bonito nome, como são bonitos os encontros.

Por isso hoje não me preocupo tanto com o que se leva. A gente sempre leva, ainda que não. Ainda que não nos reencontremos em vida.

- É triste, porque as pessoas vão embora e não sabemos se um dia as veremos de novo - desabafou um garoto - quando víamos os índios Mebengokré, com quem passamos uma semana, subirem no ônibus que os levaria de volta à sua aldeia.

Eu também fiquei triste, ao vê-los partir. Mas gosto de duvidar da linearidade do tempo. E aí tudo é encontro. E o encontro, em si, é a manifestação do divino.

Eu ganhei um nome indígena: Gréipu. Ganhar um nome é nascer para alguém. O nascimento é um encontro, e eu terei sido Gréipu desde sempre, mesmo que não os veja mais. Eu acredito que tudo é desde sempre e para sempre. Dentro do fluxo, o eterno.

- Quando crescer, quero casar com você. - me disse Davi, meu novo melhor amigo, de cinco anos de idade, sem saber que falava no eterno, isso que nos impele a querer guardar alguém.

- Mas então você vai ter que crescer muito, né? - brinquei.

- É. - ele me respondeu - Antes que você morra.

A morte - fui lembrada subitamente.

Mas a vida.

Acabei me desencontrando da Brisa e, muito convenientemente, resolvi passar mais tempo tomando banho naquele rio, que não era o de janeiro. E voltei dias depois, com outra carona, sem sequer tê-la conhecido. Mas, mesmo não sendo levada pela Brisa, é bonito que ela tenha passado. E que a gente continue seguindo com o vento.

A vida é um sopro.

O encontro é maior.


segunda-feira, 31 de março de 2014

Uma alma criança no feminino



Virgínia é uma menina que é enorme em tudo. Enormes cabelos cacheados de espírito livre. Enorme boca de sorriso fácil. Enormes olhos que observam o mundo em seus detalhes. E enorme coragem.

Amor é coragem. 

Durante muito tempo ela foi, para mim, estranhamento. Lembro de um dia em que conversávamos sobre escolhas de amizades e ela afirmou que se tornava amiga de qualquer um que estivesse aberto para isso. Respondi que isso não podia ser, porque sempre temos preferências e afinidades. Virgínia disse que podia. Ela era. Levei tempo para perceber que Virgínia pode. E aos poucos ela se tornou referência para mim. Uma mestre à la Alberto Caeiro, com sua sabedoria simples, que destila verdade. 

Virgínia era chamada de bruxinha. Por quê? - perguntei. Porque ela enxergava. Pedi que me enxergasse. Ainda era cedo, eu a conhecia pouco e nem sequer a chamava de amiga. 

Ela enxergou em mim uma alma criança: um espírito novo no mundo, em uma de suas primeiras encarnações. 

Não sei o quanto acredito em almas como entidades individuais duradouras, mas a verdade é que sempre me lembro de Virgínia e penso que, de alguma forma, ela tem razão. Só posso ser uma alma criança, pois não consigo me acostumar com o mundo. 

E, em um momento em que tanta voz de amor se faz necessária, porque o que ouvimos reverberar são discursos de ódio, me vi calada: assim, uma alma criança, assustada e impotente. É permitido matar pobres nas favelas? É permitido atacar mulheres com roupas curtas? Com argumentos se combate a ignorância, mas com que armas se combate o ódio, esse tão pesado e tão cru, que tem se instaurado?

Estou perdida.

Então me calei, porque achei que minhas palavras, neste momento, seriam completamente óbvias e vãs. Se preciso dizer para alguém que o estupro é errado, então esse alguém está fora do meu canal de comunicação.

Mas vai além, o debate. Ou melhor, vai aquém. Reside no nível do muito pequeno e do muito próximo. É preciso falar sobre delicadeza. 

Estupro é o ápice. E foi tão banalizado que deixamos de enxergar essa violência que pertence a todas as instâncias da vida social. E que nos oprime. E que nos aprisiona. A todos nós, não se enganem, homens e mulheres. Também deve ser aterrador ter que se passar por forte. Deve ser solitário não poder chorar.

No Carnaval deste ano um garoto tentou me beijar à força. Não falo em beijo roubado, falo em força. Em segurar meus braços. Tudo porque eu havia sido legal. Porque havia conversado com ele, quando ele puxou assunto.

O machismo atinge esse nível da delicadeza, e isso para mim é o mais grave. A opressão nos torna pessoas que odeiam e que reproduzem o ódio. 

Habitam em minha memória minhas primeiras imagens do feminino. Do saber-me mulher. Eu tinha em torno de onze anos de idade, minha irmã tinha treze. Íamos a pé para as aulas de natação e levávamos cantadas de marmanjos de bicicletas. Havia muitos terrenos baldios no caminho. Eu tinha pavor de estupro. Lia reportagens sobre o assunto e pensava que, se um dia acontecesse comigo, eu teria que me suicidar. 

Desde então passei a ver os homens como ameaças. A maioria deles não ajuda, pois lança olhares e palavras na rua que tentam me colocar em meu lugar de objeto. Desde que cresci, me defendo: respondo às grosserias. E o surpreendente é que as pessoas estranham. Reagem como se a violenta fosse eu. 

Semana passada entrei pela segunda vez na farmácia vizinha, para reclamar do comportamento dos funcionários que ficam na porta. Me deram razão como consumidora, não como cidadã, ou humana ou mulher. Os consumidores têm sempre razão. Mas e a pessoa? O gerente prometeu tomar providência, mas vi em seus olhos a incompreensão. O que tem de mais em receber um "elogio" ou um assovio ao passar na rua?

O que tem é isso: Você é vista como objeto sexual (tentei encontrar outra expressão, por esta ser tão banalizada, mas a expressão é essa mesma. Você é objetificada. E sexualmente). E você acaba sendo obrigada a andar de cabeça baixa, a não olhar as pessoas nos olhos, a não enxergar. Porque, se você se abre como humana, a interpretação que se tem é que você dá uma abertura sexual. A culpa do ataque, seja de que nível de violência for, é vista como sua, mulher. Pela roupa que se usa, pelo horário em que se anda, pelo sorriso que se dá.

Então você é obrigada a se proteger e acaba se passando por arrogante. Toda mulher sabe do que falo.

Eu aprendi a me fechar desde muito cedo. E quando tentei abrir, não encontrei caminhos. Porque dou bom dia ao porteiro e ele me responde com olhar de tarado. "Eu queria - e tento - ter a liberdade de ser mais legal" - desabafei com um amigo, ao explicar-lhe como me sinto oprimida por ser mulher. "Eu queria, sinceramente, poder falar com as pessoas na rua, poder enxergar e ser enxergada". Eu queria ter relações mais humanas e com menos medo. 

E o que a gente não vê é que o machismo nos priva - a todos - exatamente disso: de um contato honesto entre as pessoas. Impõe ao homem um olhar de "pegador" e à mulher um muro de proteção. E a gente perde o que de melhor pode haver: a troca, a parceria, o amor. E as tantas couraças nos fazem odiar. E viver cercados por discursos de ódio.

Por isso eu vejo um caminho em Virgínia, que tem tanta força e coragem para amar apesar do mundo. E eu tento me espelhar em Virgínia. E me sinto tropeçando sempre. 

Virgínia é um espírito sábio. E eu ainda sou uma alma criança, desacostumada com o mundo.

Preciso de delicadeza para conseguir engatinhar.


terça-feira, 11 de março de 2014

A voz que grita



Eu fui uma criança de poucas palavras e muita cambalhota. Estava sempre pendurada em alguma coisa: em cima das árvores, nos muros, na varanda. A grande façanha foi conseguir pular de cima do prédio (sim, de cima do prédio) para a janela do apartamento logo abaixo, junto com a Sandinha, amiga igualmente destemida.

Lembro de uma infância silenciosa, e talvez não seja bem assim. Minha tia, Stella, costuma dizer que gostava de me escutar, e que eu contava várias histórias engraçadas. Acho que houve mesmo um momento em que eu era a engraçada da família, mas me é uma lembrança tão distante, que é como se não fosse eu. Eu me lembro é do silêncio. E de muitas palavras, mas nunca minhas. Sempre tive apreço às palavras, desde que, cedo, aprendi a ler e folheava afoita o volume de poemas e rimas do Mundo da Criança. Até hoje suas imagens e versos povoam minha memória.

E desde cedo minhas aulas preferidas eram as de redação. Era quando eu dizia o que quase nunca dizia com a voz.

O fato é que só depois de crescida comecei a falar, falar mesmo. Em alguns momentos, passei a falar até bastante, até mais do que deveria. Em outros, como boa taurina, ruminava e guardava tudo ali, no não-dito. Mas a idade faz dessas coisas e, de repente, me vi dizendo coisas das quais só me dava conta no milésimo de segundo seguinte: "Ei, você está furando fila!"

Falei. Antigamente sofria mais.

Curioso é que, quando passei a falar, me dei conta de que não tinha tanto a dizer. Não de mim. E que tinha mais é que escutar do mundo, que tem tantas e tantas histórias que devemos ouvir. E me veio esse senso de urgência de um mundo que precisa ser escutado, de histórias que precisam ser contadas. E percebi que, quando Galeano ou Rubem Braga contam causos pequenos de pessoas pequenas, eles falam na verdade de nós: esse ser universal e humano que se equilibra entre o amor e o poder.

Sexta e sábado passados participei do ato dos garis por direitos. Quis me somar para ampliar a voz daqueles que há muito não a têm. Gritei muito, porque queria que a cidade nos escutasse. Mas também escutei, escutei demais. Trabalhadores que se aproximavam para contar espontaneamente sobre suas vidas e suas condições de trabalho:

- Sou gari há vinte anos. Antigamente as condições eram melhores, mas foi decaindo cada vez mais. Hoje eu tenho vergonha de entrar no mercado, porque não consigo comprar o que preciso. O arroz e o feijão ainda consigo, mas uma carne, uma coisinha a mais, já não consigo. Como vou levar as crianças ao mercado?

- Nosso gerente não se importa com nossa humanidade, só com as tarefas cumpridas. No outro dia um companheiro nosso morreu em trabalho, esmagado por um caminhão. Ele mandou retirar o corpo, imediatamente colocou alguém para substituí-lo e ordenou que voltássemos a trabalhar. Mas como eu posso voltar a trabalhar, se meu companheiro acabou de morrer?

- Antigamente os garis eram ignorantes, às vezes trocavam sua força de trabalho por uma garrafa de cachaça. Mas hoje não. Hoje somos estudados, temos formação. - vários fizeram questão de me dizer.

E houve o que profetizou:

- Preste atenção no que eu digo: Daqui a alguns anos você contará a seus filhos sobre 2014. Este é um ano histórico, este momento será para sempre lembrado.

Escutar o que eles têm a dizer, mesmo pelo que não dizem. Escutar o lixo todo amontoado pelas ruas durante sua greve. O lixo que contava da importância da profissão, mas não só. O lixo que contava da indignação, mas não só. O lixo que conta de nós.

Confesso que achei bonito aquele lixo catártico espalhado pelas ruas. Porque fomos obrigados a vê-lo: isso que somos. Porque estamos acostumados a que nos tirem da frente, para que sigamos brincando que ele não existe. Mas lá estava a montanha de lixo. Nós a produzimos. E, mesmo que seja Carnaval, é possível que uma sociedade produza tanto, tanto lixo assim e saia impune?

Como é bonito quando o mundo diz o que o mundo tem a dizer.

E é preciso ter voz para não adoecer: foi o que a vida me mostrou, de forma alegórica. Foi logo depois que saí do ato dos garis. Gritei muito e perdi a voz. Necessitava de muita energia para soprar cada palavra, até que me calei. E, junto com a voz, perdi a energia vital. Passei dois dias de cama. Ou melhor, de sofá. Na segunda-feira os compromissos já chamavam, mas permaneciam fracos, a voz e o corpo. De vez em quando eu usava uma energia a mais, para fazer festinha a algum gari que porventura eu encontrasse na rua.

Passei a vê-los com alegria, enquanto varriam as calçadas.

Mas confesso que continuo desejando o lixo, com suas montanhas imensas a se impor à nossa vista. Sinto que não escutamos o suficiente sobre quem somos e para onde vamos. Sobre nossos excessos e nossos descaminhos. Sobre nosso papel e nosso impacto no mundo. Mundo que não tem voz adoece, e o lixo ainda tem muito o que gritar.

Que saibamos escutar.

Amém.



sexta-feira, 7 de março de 2014

O Carnaval da Comlurb



Saímos da manifestação dos garis e nos sentamos para almoçar. A Tathiana, que é essa amiga querida que vibrou comigo e cantou comigo e lutou ao meu lado, perguntou, quase afirmando:

- É claro que você vai escrever sobre hoje, né?

- É... Talvez...

Eu não sabia. Como poderia escrever sobre tanto, se pra falar do dia de hoje eu teria que falar sobre Carnaval e sobre opressão e sobre a minha infância.. e depois cada fio que puxava outro fio, o que tornava quase impossível a concatenação de palavras coesas. É que, de tanto a ser dito, aquilo tudo se misturava em um todo inefável, que eu poderia chamar de minha vida ou de nossa vida ou de história do mundo. Parecia grande assim.

O fato é que eu ainda vestia aquela camisa alaranjada: o uniforme da Comlurb que um gari tirou do corpo e me ofereceu de presente:

- É seu.

- Tem certeza?

E me curvei um monte de vezes e agradeci, com a mão no coração e a emoção à flor da pele.

Vesti a camisa. Mas o engraçado era que, mesmo uniformizada como eles, havia algo em minha testa, ou em meu corpo, ou em minha cor, não sei bem, que denunciava que eu não era um deles. Uma coisa de classe média que se entrega e me fazia tão facilmente reconhecível ou distinguível ali no meio. Eles passavam e agradeciam o apoio, brincando e rindo, que é esse jeito de ser alegre apesar de.

Eram quase todos pretos. E estavam indignados, mas batucavam, pois desse sangue é feito o samba. Aprendiam ali, naquele momento, a serem visíveis. Um deles me explicou:

- Nós finalmente nos unimos para lutar pelos nossos direitos. Foi por causa das manifestações do ano passado, que a gente viu que era possível.

As manifestações do ano passado. Que bonito vê-las reverberarem logo assim.

Quando saí de casa pela manhã, eu temia e esperava por violência policial. Por isso fui, também. Para não deixar só uma classe que já é diariamente oprimida. Mas, em vez de violência, houve Carnaval. Mais até do que aquele que mal acabara na quarta-feira de cinzas.

Foi na terça à noite, na verdade, que eu me dei conta de que o Carnaval terminara. Era o Aterro do Flamengo e era a Orquestra Voadora. Um momento olhei pros lados e me ocorreu: "isso não é Carnaval, é balada". E fui embora.

Carnaval, para mim, é quando as pessoas brincam e se falam e se olham sem medo. Balada é uma aproximação mais agressiva, é uma coisa de querer "pegar", beijar, sexualizar. Não tem enxerga, mas desejo cego. É essa coisa de querer. E eu que não suporto que queiram nada de mim...

Gosto de Carnaval pela energia de sermos um e de estarmos juntos. Hoje, na manifestação dos garis, éramos assim: juntos. E gritávamos palavras de ordem, batucávamos, cantávamos.

Uníamos o que fora segregado tempos atrás, por uma estrutura que nos foge. Vem de muito antes, mas, no tempo de mim, volto à infância. Lá, quando corríamos atrás do caminhão do lixo, gritando: "Lixeiro! Lixeiro!" Até que eles nos perseguissem e fugíssemos para a proteção do prédio. Eu era muito pequena e acho que acreditava que, se eles nos pegassem, levariam-nos embora em seu caminhão. E não consigo me lembrar se era apenas uma brincadeira ou se tinha um julgamento de valor. Mas sei que mais tarde tinha, quando eu, já maior, estudava em uma escola burguesa e católica. Tínhamos olimpíadas anuais entre as turmas. Cada uma delas vestia uma camisa de cor diferente, para que diferenciássemos as equipes. Havia sempre algum time de uniforme alaranjado. E nosso modo de ofendê-los era gritando: "Gari! Gari!" Como se fosse algo menor. Ou como se equivalessem, eles próprios, ao lixo.

Que nós jogamos, diga-se de passagem.

Então hoje, enquanto cantava com eles, me ocorria tudo isso: palavras como dignidade, igualdade social, humanidade. E eu vestia a camisa deles e, embora permanecesse do outro lado da fronteira, aquela da visibilidade, eu tentava me redimir. E ser humana, apenas.

E eis que é Carnaval.


sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

O caminho inverso


Eu estava andando pela Rua do Catete, quando ouvi atrás de mim alguém falando ao telefone:

- Ela conseguiu ver no fundo de mim. Ela viu no fundo de mim e pediu para eu ter paciência. Mas ela viu no fundo de mim.

Fiquei curiosa para saber quem falava aquilo e o observei, quando passou. Era um jovem em seus vinte e poucos anos, talvez menos, aparência descolada, camiseta em tie dye. Ele passou por mim e de repente não pude mais escutar a conversa. Acelerei o passo. Confesso que, discretamente, até dei uma corridinha. Mas, quando o alcancei, ele mandou beijo e desligou o telefone. Droga.

Tive certa inveja. Pela Rua do Catete havia um jovem que fora enxergado por outra pessoa. No fundo de si.

E eu? Quem enxergará no fundo de mim, se nem eu enxergo no escuro? Ali no fundo mais fundo, onde não entra luz. Eu entro apalpando, com medo e com coragem, mas mal distingo as texturas. Intuo, às vezes. Mas enxergar, definitivamente não. Sou cega no escuro de mim, e aí reside o pavor e a liberdade.

Pois eu mergulhava nesse fundo, quando encontrei uma isca. Um amigo querido que veio aqui em casa fazer um suco amoroso. Em vez de hortelã em maço, trouxe-a em vaso, para que houvesse vida após o suco.

Eu mordi a isca da vida da hortelã e, sem que me desse conta, fui puxada para cima, lá onde há luz. Comecei a organizar de fora para dentro. Arranjei muda de manjericão e de ixora. Comprei vasinhos coloridos e mais um vaso enorme, para plantar capim-limão, meu atual sonho de consumo.

Vim do Largo do Machado carregando vinte quilos de terra, quase morrendo, claro. Na entrada da vila, larguei um dos sacos, para buscá-lo depois. Um menininho, que brincava de skate, me chamou:

- Moça, ficou um pacote aqui no chão.

- Eu sei. É que está muito pesado. Daqui a pouco volto para buscar.

- Quer ajuda?

- Não precisa. Está pesado mesmo. Vou levar este até a porta e já volto.

Larguei o pacote de dez quilos em casa e, quando ia sair para buscar o outro, me aparece o menininho, com o pacote sobre o skate. Agradeci emocionada e pensando que, depois de criar minhas plantinhas e publicar meu livro, vou querer fazer um filho.

Enchi a floreira com vasinhos de plantas e continuei colorindo, de fora para dentro. Montei estante, pendurei quadros, enchi a cama de almofadas indianas. Meu quarto, que estava uma bagunça, começou a ganhar certa ordem. Sempre de fora para dentro. Fui arrumando, arrumando. Até conseguir, não enxergar, mas me locomover melhor no escuro. O fundo de mim.

Há momentos em que é preciso preencher a vida de cheios para enxergar melhor o vazio, essa matéria de que somos feitos, nós e o universo.

Às vezes é só pegar o caminho inverso.



quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Uma novela e alguns novelos

Há dias que essa novela vem tomando conta dos meus dias. E que tento contá-la. Mas cada tessitura é feita de muitos fios, alguns de outros novelos. E todos compõem a mesma trama. Por isso ela se desenvolve em quatro capítulos, mas com vários parênteses: os outros fios, sem os quais uma história é impossível.

Capítulo 1:

Soube-se que na Rua das Quaresmeiras vivem os corações mais moles da vizinhança. O fato é que ela apareceu por ali, decidida a ficar. Entrava em nossa casa sem maiores pudores. Havia constantemente uma porta aberta e, mesmo quando não, ela sempre podia contar com a portinha dos gatos.

Eles, que em outras circunstâncias se impunham perante os animais vizinhos, por algum motivo recuaram diante dela. Mesmo Rafinha, o mais territorialista de todos, que costumava expulsar aos berros qualquer outro gato que ousasse aparecer, passou a agir diferente. Fingia não vê-la, ainda que ela entrasse em casa diante de seu nariz. Quando ficou frente a frente com ela, fugiu. João não dava a mínima e continuava blasé sobre o braço do sofá, como se não notasse aquela presença estranha. Miki ainda tentou discutir com ela, mas, ao seu menor gesto brusco, saiu correndo também. No dia em que não correu, levou uma mordida na orelha.

Minha irmã concluiu que ela não pertencia a nenhum vizinho:

- É uma gata de rua.

- Mas como ela veio parar aqui?

- Alguém deve tê-la trazido. Ou ela passou pela portaria.

- Ela está com fome, vamos alimentá-la.

- Mas, se a alimentarmos, ela vai voltar sempre.

- Mas, se não a alimentarmos, ela vai ficar com fome.

Ela voltou sempre. Colocávamos ração e água em frente à porta, mas ela queria mais do que comida: queria um lar. Tentava entrar em casa e conquistar nossa afeição, esfregando-se em nossas pernas. E a gente tentando não se render àquele amor tão fácil.

Meu pai já andava preocupado com a movimentação felina. Foi assim cada vez que trouxemos um novo gato. Eles iam ficando e, quando se via, já estavam lá. Mas agora não morávamos mais naquela casa, eu e minha irmã, nem naquela cidade.

O fato é que em casa aquela gata não poderia ficar. Tampouco poderíamos ignorá-la como se não fosse problema nosso. Sempre é. A gente tem responsabilidade pelo mundo, embora não tenha controle sobre nada.

(Aqui abro o primeiro parêntese de outro fio, para contar que minha irmã é a pessoa que deixa de jantar para tentar salvar uma lagartixa. Posso vê-la compenetrada sentada à mesa, realizando uma cirurgia na pobre da lagartixa, que fora atacada pelos gatos, e lamentando não existirem instrumentos próprios: “a linha deveria ser muito mais fina, a agulha também”. Imagino que nenhuma escola de veterinária tenha jamais previsto tal cirurgia. E acho bonito que, em algum lugar, exista alguém para quem qualquer vida, por mais pequena, seja preciosa e digna de ser salva.)

E aqui volto à história da gata, pela qual nos responsabilizamos porque fomos escolhidas, mesmo que não a tenhamos escolhido.

- Ela precisa ser castrada – resolveu minha irmã, que é veterinária de animais silvestres e, como ela diz, veterinários de silvestres acabam pensando como biólogos -  ... senão ela vai se reproduzir exponencialmente e, com ela solta por aí, logo teremos um problema ambiental.

Antes de levá-la a uma clínica, entretanto, minha irmã a examinou: tinha mamas proeminentes.

- Será que ela está prenha ou que deu à luz recentemente?

Apalpamos sua teta: não tinha leite.


Capítulo 2:

A essa altura, eu estava fora da cidade e só pude acompanhar o desenrolar dos fatos à distância. Minha irmã me informava através de mensagens: levara a gata para ser castrada. O funcionário da clínica ficara com dó e lhe dera comida, fazendo com que sua cirurgia fosse adiada em um dia. Minha irmã tentara mantê-la em casa durante o pós-operatório, mas a gata não aceitou ficar presa e desesperou-se para sair. Por onde andaria ela quando não estava conosco? Voltava sempre, entretanto, para comer e procurar aconchego. Minha irmã aproveitava suas vindas para cuidar de sua cicatriz.

Enquanto isso, na casa ao lado, eis que Emília, nossa vizinha, encontra uma gatinha filhote. Como a nossa costuma ser a casa dos gatos, ela veio perguntar se não tínhamos perdido algum. Não tínhamos. Mas não parecia ser coincidência surgir aquela filhote logo ali – e tão semelhante à outra gata que nos aparecera.
A gatinha era pequena, muito. Não como um gato filhote, mas como um ratinho. Parecia recém-nascida, mas já tinha dentes. Era frágil, apática. Dormia o dia inteiro e só era esporadicamente acordada por minha irmã e Emília, que se juntavam para cuidá-la.

( E abro este segundo parêntese para contar sobre o abacateiro de Emília.  Houve um dia em que lhe perguntei sobre as árvores frutíferas de seu quintal. Foi quando me contou: “Eu fui comer um abacate e, quando o abri, achei que aquela semente parecia um feto – eu tenho isso, costumo ver essas imagens, em parte por isso me tornei vegetariana. - Como não tive coragem de jogar aquela semente fora, plantei-a no quintal”. Essa é Emília. Alguém que consegue enxergar o mundo sem divisões. O outro nome disso é amor.)

Nunca houve tanto movimento entre as duas casas da Rua das Quaresmeiras. Mulheres e gatinhas indo e vindo. As primeiras tentando unir as segundas. A gata maior (que ainda assim era pequena) não parecia interessada em assumir a maternidade. E as duas mulheres insistiam. Chegavam a jogar leite sobre as tetas da gata-mãe, para que a pequenina mamasse.

Voltei de viagem e ainda pude conhecer a gatinha. Sabia que ela era miúda... mas tanto! Era vida muito frágil que se punha em nossas mãos.

E a mãe nem aí.

- Ainda bem que a castramos. Que mãe desnaturada! – julgamos.

Então, como era inevitável, a gatinha não resistiu. Emília levantou-se durante a noite para vê-la, e ela já estava cedendo. Amanheceu. Foi um dia de luto na Rua das Quaresmeiras.


Capítulo 3:

(Este capítulo já começa com um parêntese. Outro fio da mesma tessitura. É que preciso contar o sonho de Emília, na noite fatídica. A gatinha já havia morrido. Emília já havia chorado e chorado. Então voltou para a cama e veio o sonho. Foi assim: Ela ia conferir a gatinha em sua caminha. E, enquanto cuidava dela, de repente percebeu que não era a mesma filhote que estava lá, mas outro gato.)

Então aconteceu. Em um outro dia, que já era um novo dia, eis que aparece um gatinho andando pelo quintal. Ao ser avistada por pessoas, correu para se esconder dentro de um cano. Era filhote, também. Saudável, ativo. Emília conseguiu pegá-lo. Levou-o para minha casa e ficamos as duas na varanda, ligando os pontinhos. Só podia ser irmão da outra gatinha, ambos filhos da gata adulta, nem tão adulta e nem tão grande. A gente não entendia como aquele gatinho, que Emília chamou de Tunico, poderia ter sobrevivido.
Até que ela apareceu, a mãe. E foi surpreendente a serenidade e o modo como tratava a criança: lambia-o, brincava com ele e até o amamentava. (“Então ela tem leite? Só pode ter leite, senão ele não estaria vivo!”) 

Aos poucos as coisas começavam a fazer sentido. Por isso a rejeição à gata mais fragilizada. Provavelmente a mãe sabia que ela não tinha chances de sobreviver e simplesmente abandonou-a, para concentrar suas energias cuidando do filhote saudável. Por isso também ela era tão esfomeada (comia várias vezes ao dia, na nossa casa e na casa de Emília). E por isso, sobretudo, o poder: a forma como conseguia amedrontar Pepita, a cachorrinha de Emília, e os três gatos da minha casa, tão maiores e mais fortes. Era uma mãe protegendo seu filho. A maternidade confere poder e coragem extraordinários.

(“É como o caso do caçador” – contou minha irmã. Ela havia assistido à palestra de um biólogo que, antes, fora caçador. Um dia, encontrou uma onça com seus filhotes e, decidido a matá-los todos, atirou primeiro em um deles. Quando a mãe viu seu filhote ser atingido, soltou fogo pelos olhos. Foi essa a expressão do caçador: ele viu fogo nos olhos. E aquele fogo era tão forte e tão poderoso, que desde então ele parou de caçar. Tornou-se biólogo.)

Era curioso, agora, desvendar a vidinha secreta daquela gata. Então ela era mãe. Mãezona. Imaginávamos seus diálogos com Tunico, orientando-o a se esconder quando aparecessem pessoas. Pois como um filhote tão brincalhão e ativo pôde passar despercebido por tanto tempo?

Eu evitava me perder em pensamentos sentimentalistas, senão acabaria desejando o que já desejava: ficar com a gata. Mas eles me vinham – os tais pensamentos – à cabeça. E às vezes eu os verbalizava: Que aquele devia ser o dia mais feliz da vida daquela gata. Que ela sentia que, enfim, encontrara um lar e segurança, para ela e seu filhote. Que ela estava em paz, como nunca estivera.

E era visível a paz. Às vezes ela simplesmente nos confiava Tunico e saía para passear. Outras vezes passava tempos lambendo-o, deixando-o morder seu rabo ou sugar seu peito – com ou sem leite. Quando uma de nós saía com Tunico no colo, ela esticava o pescoço, a procurá-lo. Quando saíamos de perto, deixando os dois juntos e sozinhos, ela vinha nos chamar. Queria aquilo: nós quatro espalhados na varanda. Um lar.

Capítulo 4:

No dia seguinte, Emília apareceu em casa:

- Vizinha, você não acredita no que aconteceu!

Meu coração foi parar na boca.

Ela continuou:

- Acabei resolvendo adotar a gata e seu filhotinho. Arrumei um quarto para eles lá embaixo e deixei-os dormindo lá. Hoje de manhã cheguei e, em vez de um, havia quatro filhotinhos!

Me veio à cabeça a voz da minha irmã, na noite anterior: “Se apareceu mais um, deve haver outros por aí. Uma gata nunca pare apenas dois”.

Quatro! Todos machos, saudáveis, brincalhões. Emília trazia leite, ração de cachorro, seu pai trazia queijo, carne moída. Virou festa.

- Onde será que eles estavam escondidos? Será que eles estavam naquele cano?

- Acho que não. Lá mal cabia o Tunico.

Era incrível pensar que aquela mãe cuidara escondido de quatro filhotes. E que, apenas quando sentiu segurança, carregou um por um à nova casa. E estava explicado por que ela tivera tanta urgência em sair, quando passara pela cirurgia de castração: havia gatinhos escondidos em algum lugar por aí, cuja sobrevivência dependia dela.

- No outro dia eu dei comida para os gatos, – me contou Emília – a mãe deixou-os comendo e subiu para me pedir mais. Dei um pedaço de frango para ela. Acredita que ela comeu um pedaço e trouxe o resto para os pequenos?

Era inacreditável. Era surpreendente. E era, sobretudo, bonito, ver tanta vida assim.

E de repente ríamos da vida secreta daquela gata, que um dia ouviu falar na Rua das Quaresmeiras, onde moram os corações mais moles do lugar. Uma gata que nos escolheu, que nos invadiu, que construiu um lar.

- Hoje sim – concluiu Emília – deve ser o dia mais feliz da vida dela.



terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Outra viagem



Acho drogas uma caretice.

Do rivotril à maconha. Da cocaína ao McDonalds. Da ritalina ao álcool. Da nicotina à Coca Cola.

Sou dessas que não bebem e não fumam nada. Ou seja, chata. Mas careta, jamais.

Careta é o conservadorismo que mantém no poder o poder econômico. Careta é acreditar que o valor de um ser humano reside em seu carro, em sua casa, ou em seu cargo. É olhar atravessado para essas tantas pessoas destituídas de “valor” e dedicar a vida a conquistá-lo. E tomar uma droga para não sucumbir. E tomar outra droga para ser produtivo. E fumar outra droga na pausa do respiro. De novo para não sucumbir. E tomar outra droga para conseguir se concentrar. E comer uma droga no meio da correria. E beber outra droga para ser sociável. E tomar outra droga para dormir.

Careta é o status quo.

Por isso falar palavrão não nos deixa menos caretas. Falar alto no bar também não. Nem pegar todas na balada. Nem ficar high com os amigos.  Nem ficar eufórico, nem ter alucinações, nem ficar chapadão. Careta, careta, careta.

É claro que entre as tantas drogas, algumas aceito, outras tolero e a outras mais tenho aversão. Tolerância zero para cigarro, por exemplo. Que faz mal à saúde própria, à saúde dos outros, que é um desrespeito ao espaço público, que é um desrespeito ao meio ambiente, que fede e fomenta uma indústria que também fede.

Já a maconha é uma das drogas mais engraçadas, pois geralmente quem fuma pensa que transgride alguma coisa. Ou que atinge algum tipo de comunhão, sei lá. Tenho uma amiga lúcida, que sabe que fuma apenas para aguentar a porrada da vida. Eu costumo lhe dizer que, se é pra amortecer, melhor que seja maconha do que droga de farmácia. Mas que, se for pra resolver, o bom mesmo é yoga.

Também conheço aqueles que dizem que não precisam de maconha e que seria lindo se se pudesse plantá-la. É. Mas precisam a ponto de fomentar o tráfico. Não acho pouca coisa. Agora, lúcido, lúcido mesmo, é Mujica, que promulgou a lei que regula o mercado de maconha no Uruguai. Sem essa caretice de “uhu, que legal!”, mas como uma atitude política séria e necessária, rompendo tabus e moralismos vazios.

Pois, cá entre nós, de que adianta reprimir, se a verdade é que vivemos em uma sociedade que produz a necessidade de drogas? Uma sociedade que sufoca, que impõe um ritmo de vida e de trabalho que desrespeita o ritmo do corpo e da natureza, uma sociedade que exige que sejamos alegres o tempo inteiro, que sejamos magros, produtivos e fortes? Uma sociedade que exige que escondamos atrás de regras e superficialidades nossas verdades escuras? Como se pode, sóbrio, sobreviver?

Por isso compreendo o consumo de todas as drogas, legais e ilegais. Mas não sem achar careta. Porque não se trata de alternativa à sociedade materialista/capitalista/individualista como é, mas de encaixe e reprodução. Porque usá-las é necessidade criada por esse mundo castrador, mas também uma maneira de mantê-lo e de torná-lo viável.

Superar a caretice não é ficar doidão, mas estar conectado ao mundo. É essa conexão que transgride o sistema que oprime. A conexão existe em vários níveis, nem sempre racionais. Acredito, inclusive, que todos os estados produzidos pelas drogas também podem ser atingidos através de trabalho corporal. Meditação. A diferença é que meditação é processo. Processo é transformação. Enquanto droga é resultado rápido. Segue a lógica do mundo moderno. E a modernidade é démodé. Conservadora. Opressora. Ultrapassada, desde que a ultrapassemos.

Para isso temos que aceitar a travessia. Essa é outra viagem...



quarta-feira, 1 de janeiro de 2014

O trem da vida



Eu me interesso pela vida alheia. Sempre penso que poderia ser comigo, por isso fico esperançosa quando encontro um casal antigo que ainda se ama muito ou fico incomodada quando escuto histórias de pessoas fazendo mal às outras. Acho intrigantes os caminhos do destino e, porque sei da minha impotência diante da vida, observo no voo dos outros os ventos possíveis. Pode tudo, eu sei. E às vezes pode até fazer sentido.

Pois eu almoçava em um restaurante simpático em Alto Paraíso e observava as pessoas do local, todas elas, igualmente sujeitas às peças que a vida prega. Até que minha atenção foi fisgada por um moço, aparência de japonês, que tentava descer um degrau com um carrinho de bebê. Ele cumprimentou os moços da mesa ao lado da minha, deixou o carrinho com uma menininha linda e se despediu. Logo apareceu sua esposa, ela sim para ficar, junto com outra criança, um menino curioso e agitado. Foi logo contando sua história com o marido:

- Eu e o Alan nos conhecemos há quase vinte anos...

Logo me perguntei quem seriam seus amigos, que não conheciam seu esposo de tanto tempo, mas, como se respondesse à minha dúvida, ela continuou:

- Mas só nos casamos em 2010.

Me interessei e continuei prestando atenção à história. Ela contou que conheceu Alan no primeiro dia de aula na faculdade (de quê, me perguntei), e que anos depois ele lhe contaria que, na primeira vez que a vira, nem dera atenção. Na segunda vez, teve certeza de que ela era a mulher da vida dele. Mas ano vai, ano vem, nada acontecia, além de um gostar platônico, de ambas as partes. Até que, no quinto ano de faculdade (ah, de arquitetura!), a turma viajou junta para um congresso em Uberlândia. E, no primeiro dia de congresso, Alan ficou... com a Carla! Uma menina qualquer da turma dos dois. A nossa personagem, cujo nome não descobri, mas que tem um rosto quadrado e expressivo, ficou arrasada. E eu, que tomei as dores dela, também.

Depois disso ela acabou deixando-o de lado e começou a namorar outro cara - o Pablo. Quando Alan percebeu que era sério, foi conversar com ela, que lhe disse:

- Lembra quando você ficou com a Carla? Pois é. O trem da vida passou.

E passou e passou. Cada um seguiu seu caminho e namorou outras pessoas. Muito tempo mais tarde ela saberia que, depois da tal conversa fatídica, Alan ficou doente, de cama, por uma semana. É que o trem atropela e tritura. Nem sempre recolhemos os pedaços.

Eles recolheram. Reencontraram-se em 2010, começaram a namorar, casaram-se no mesmo ano e duas semanas depois engravidaram do primeiro filho, Ian, o menino curioso que brincava pelo restaurante.

Naquele dia, visitariam a fazendinha.

E eu seguiria viagem para Cavalcante, intrigada com a vida e com o trem que passa. Nem sempre são suaves, os atropelamentos.

Mas faço mosaicos.