domingo, 19 de abril de 2015

26 de março

- Amor cabe em contexto? - perguntaram-me certa vez.
Não sei muito sobre quase nada. Mas de Amor eu sei.
Eu vejo Varanasi do avião, com suas luzes acesas, na noite que já entrou. Eu vejo o Ganges de cima e ele em nada se parece com o Ganges que conheço. Visto do céu, até parece que tem margens.
Não tem.
O Amor que descobri em Varanasi não cabe em uma cidade, todo ele transbordante. É tão bonita a vida que corro o risco de escrever palavras bregas, doces bobagens. Faço má literatura com verdades.
Meu coração acelerou logo que acordei, logo que me dei conta. Tem sido assim há alguns dias, mas agora a dor é pequena em meio à alegria do que foi. Não. Do que é. Tudo continua sendo, mesmo que a gente não veja.
Mas, sabe, eu vejo.
Hoje era a semi-final do campeonato de críquete, cidade em festa. Veio sentar-se comigo, no café da manhã, um senhor alemão, para acompanhar a partida. E depois um garoto francês que vive em New York. Em poucos minutos, esquecemos o jogo e começamos uma animada conversa.
Eu tive vontade de dizer ao garoto que ele parecia um búfalo. Pensei melhor e preferi não correr o risco de ser mal interpretada. É que ele tinha a pele negra e brilhante. E tinha músculos fortes e ossos salientes. Mas ele mal chegara a Varanasi e, em menos de vinte e quatro horas, já iria embora. Como explicar um búfalo a alguém que não os vivera diariamente pelo rio?
O búfalo nos contou que iria estudar no Brasil, no meio do ano. Seu pai vivia na Bahia. E sua mãe era chinesa.
- Jura?
Depois que ele falou, fez sentido.
Já o alemão, eu não entendia muito o que ele dizia. Sei que ele comercializa cristais: quartzos, ametistas...
- E onde você arranja essas pedras? Na Índia?
- Não, no Brasil.
Ele explicou que os cristais são extraídos no Rio Grande do Sul e de lá seguem para Hong Kong, para serem polidos. O destino final era a Europa.
Todos nós pegaríamos um voo hoje para sair de Varanasi.
- Pena que nossos horários são diferentes, senão poderíamos dividir um táxi pro aeroporto - lamentei.
E depois fui embora correndo, porque o dia era curto. Fui comprar incensos para levar, mas não vi a loja e acabei indo parar na porta do alfaiate:
- Este vestido pendurado é de alguém ou está à venda?
Estava à venda. Era um vestido branco e assimétrico, de seda crua. Pedi para que ele o ajustasse até às três da tarde e corri para casa. Ia acabar de fazer as malas, mas havia marcado de almoçar com um amigo e já estava em cima do horário. Acabei saindo sem de fato ter entrado.
Como encontrei o restaurante fechado, fui esperar o amigo na estrada principal, enquanto me despedia de minhas bebês caninas, Ek e Do. Meu amigo chegou - esse, que me traz uma familiaridade carioca. Ele acabava de voltar do Nepal e trazia ares frescos, montanhosos. Decidimos experimentar um novo restaurante nepalês, que abrira. Eu estava feliz de reencontrá-lo, mesmo que sejam breves os encontros.
Depois eu fui arrumar a mala e ele me encontrou, em seguida, em casa. Trazia uma caixa de doces e me chamou do corredor.
- Eu perguntei pro moço lá embaixo qual era seu quarto, e ele respondeu que eram o 103 e o 104 - contou-me ele, confuso.
Eu vivia no 104, em realidade. Mas faz sentido que a gente se expanda. Com o tempo, passamos a pertencer a todos os espaços.
- Eu fico tão feliz cada vez que vejo a placa anti-fumo no meu canto do restaurante! - eu dissera ao companheiro de jornada outro dia - Está aqui até hoje, e as pessoas obedecem!
- Isso é um milagre, um milagre mesmo. Nunca pensei que fosse funcionar. E confesso que, quando você teve essa ideia, na época, achei-a até um tanto tola. - admitiu.
Pois milagres acontecem. E só acontecem no Amor. Eu me expandira em uma cidade sagrada, e ela se abrira para mim. E foi através dos seres, da comunicação cotidiana entre as coisas vivas.
- Cuidado com o carneiro, ele é muito perigoso! - dissera-me um rapaz há uns dias, quando me aproximei do bicho.
- Ele não é perigoso. - respondi - Ele é meu amigo.
Os milagres.
Deu uma pena quando vi, sobre a cama, todos os objetos que não caberiam na bagagem, que ficariam para trás. O pijama com que eu dormira em tempos frios, o poncho, a camiseta manchada do Holi. Então eu tive que dizer a mim mesma que ficaria, sim, uma vida linda, de caminhos miraculosos, para trás. Mas ela não consistia nos objetos que eu deixava. E que o essencial, o essencial mesmo, permanecia comigo.
Aprendi um pouco do desapego, mas só através do apego profundo. Aprendi a deixar o ego um pouco, que seja, de lado. Pois Varanasi é o lugar onde se enxerga, a cada mínimo instante, que não temos o controle de nada. Mas que, quando se deixa fluir com o mundo, o que vem é mais belo do que qualquer plano. É que os milagres vêm do plano do inimaginável.
Então fui, junto com a irmã que encontrara na noite anterior, agradecer à Mãe Ganges, antes de ir embora. Fiz minha oração e deixei que ela fluísse.
Depois peguei minhas malas e, em meu novo vestido branco de seda crua, percorri, mais uma vez, aqueles labirintos por onde eu perdera alguém que já fui. E onde eu encontrara muito mais. Fui arrastando a mala e me despedindo das pessoas. Todos paravam para falar comigo, para me desejar coisas boas. Eu via verdade e afeto naqueles olhos.
- Quando você volta?
- Só sei que volto.
E peguei, sem um lágrima, um tuk tuk motorizado até o aeroporto. E de lá um avião, de onde Varanasi pareceria quase uma cidade real, vista assim de cima.
E assim acaba esta oração.
Que o mundo saiba o quanto de Amor é possível.
Amém.
Meu pescoço travou logo de manhã. Era emocional, claro, e nem é a primeira vez que me acontece assim. Não sei lidar com despedidas. Meu corpo grita. E dói fora porque dentro não cabia.
Então peguei minha mochila amarela e fui caminhando até o Sparsa, este espaço terapêutico que me fora recomendado pelo amigo francês. Eu fizera uma consulta ayurvédica e um tratamento para limpar as vias nasais. Hoje, precisava urgentemente de uma massagem.
Quando entrei, havia uma moça saindo. Nos cumprimentamos com um aceno de cabeça. Depois expliquei meu problema para a recepcionista. A dor era no pescoço, mas aproveitei para fazer uma massagem completa.
O amigo que recomendara o espaço, que também é massagista, contara-me sobre essa massagem, a abhyanga, que era ótima para a circulação e para o coração. Perfeito. O coração estava mesmo partido.
A massagista era uma mocinha. Pediu que eu vestisse uma calcinha parecida com a cueca-fralda que os homens usam no Ganges, amarrada à cintura. Trouxe um óleo aquecido. Ela era pequena, mas forte. Era boa, a massagem. Quase me resgatou do passado e me trouxe para um novo lugar. Ela mostrava no corpo o que faltava para o espírito: deixar circular. Fazer fluir.
Saí com o pescoço ainda dolorido, mas com o peito mais aberto. Estava exageradamente quente, e eu transpirava toda molhada de óleo. Almocei um thali no Niyati Cafe e resolvi tomar um banho de rio antes da sobremesa. A água era fresca. Dei um mergulho, algumas voltinhas. Depois sentei-me na borda, o corpo molhado, e meditei.
Quando me levantei para sair, vi o macaco deitado. Estaria morto? Olhei para os lados, em busca de explicação. Eu o vira, havia uma semana, tomando banho no rio, junto com seu dono: um baba de
olhar expressivo, que o ensaboava sem delicadeza, mas com carinho.
- O que aconteceu? - perguntei em voz alta.
O baba me respondeu:
- Ele levou um choque no fio elétrico.
- Mas ele está vivo? Está morto?
Estava vivo. E mexeu, quando perguntei. Tinha uns espasmos de vez em quando, voltava a cair. O olhar muito angustiado. O baba explicou:
- Está melhorando aos pouquinhos. Levei ao médico. O remédio custou duzentas rúpias. Olha, é este o remédio.
Li o rótulo. Era apenas um pacotinho de fortificante. O baba misturou uma colher do remédio com um pouco d'água. Colocou o macaco no colo como um bebê e deu-lhe às colheradas. O macaco vomitou tudo. O baba então abriu uma cápsula de outro remédio, misturou com uma banana e colocou-a na boca do bicho, que voltou a vomitar.
Eu sentei-me ali do lado e fiquei acariciando a cabeça do macaco. Ou melhor, macaca:
- Larki - ele explicou em hindi e eu compreendi.
Era triste, porque muito visível o sofrimento da macaca. Rani, seu nome.
- Eu a ajudo e deus me ajuda. - contava-me o baba.
Mais tarde uma amiga diria que aquele homem era agressivo. Pois eu só vi doçura. Despedi-me dele desejando no meu íntimo que Rani ficasse bem.
A amiga era a moça com quem eu cruzara de manhã, no centro terapêutico. É uma francesa que mora no Sri Lanka, viaja há meses pela Índia e tem nome de mar. Nunca havíamos nos falado, mas nos identificamos. Não é Vinicius de Moraes que diz que não fazemos amigos, mas os reconhecemos?
Ela quis me fotografar e, de alguma forma, queríamos aquele encontro. Atravessamos o rio de barco e fizemos fotos com cavalos, que os meninos alugam na outra margem. Eram os últimos minutos de luz do sol. Depois cruzamos o rio de volta e ficamos conversando no ghat.
- Você vai jantar em algum lugar? - ela perguntou.
- Preciso ir ao Dosa Café. - tinha na cabeça a sobremesa do almoço, ainda, mas já era hora de jantar.
Ela quis me acompanhar e, no caminho, fui lhe contando sobre aquele lugar e aquela comida e aquelas pessoas:
- Esse homem é como meu pai aqui. Preciso me despedir dele.
Quando cheguei ao restaurante, ele contou:
- Minha esposa acabou de perguntar sobre você.
- Eu jamais iria embora sem me despedir.
Ele sabe que parto no dia seguinte às quatro da tarde. Ele não esquece nada que digo, mesmo que eu esqueça. E no dia de minha partida o restaurante estará fechado, porque será a semi-final do campeonato de críquete: India X Austrália.
Conversamos os três sobre lugares, espiritualidade, pessoas. A menina da mesa ao lado entra na conversa. É uma professora de yoga francesa, que vive em Barcelona e está na Índia há seis meses. Estivera lecionando yoga em Goa e está a caminho de Rishikesh. Ela é forte e sensual:
- Você parece uma versão loira da Penélope Cruz - observo.
- Estranho, mas você não é a primeira pessoa que me diz isso.
Convidamo-la a sentar-se conosco. Depois do jantar, dividimos as sobremesas. Somos três mulheres taurinas - descobrimos depois - e nos encontramos. É minha ultima noite em Varanasi.
E nos encontramos.
- E se eu pudesse começar a todo instante? - eu escrevera no dia anterior.
Pois sim. Sabia como um primeiro dia.
Comíamos dosas e doces. Era noite e parecia Natal. Éramos uma irmandade. E havia aquele homem que eu amava como a um pai.
- Ela é uma alma boa - ouvi-o dizendo de mim, para uma das moças, não lembro o contexto.
Vindo dele, que é um homem bom, foi bonito de ouvir. E depois me despedi dele e de sua esposa, "a melhor cozinheira da Índia", e parti. Partimos.
Chegamos nós três, mulheres taurinas, ao ghat. Havia uma lua nova no céu.
- Aqui é um bom lugar para você voar - convidou Penélope Cruz.
Ela deitou-se no chão, esticou os braços e as pernas e me elevou no céu. Testamos algumas posturas de acroyoga - ela viera do circo. Depois ela me virou de cabeça para baixo e massageou meu ombro e pescoço. A moça com nome de mar nos fotografava e ajeitava minha roupa, para que eu não ficasse exposta. Àquela altura já tínhamos público: uma multidão de homens ao redor.
- Hoje já não me importo. - eu dizia - É minha última noite. A partir de amanhã, ninguém vai me provocar.
Fomos caminhar até o templo do outro lado. É um templo belo, afundado no rio.
- Não acredito que a água subiu tanto! Eu entrei aí dentro há uma semana! - espantou-se a fotógrafa.
Fizemos mais fotos. Mais yoga. Atraímos mais multidões. Depois ficamos conversando sob a lua nova. Falamos sobre os amores, sobre os caminhos.
De repente era meia noite. As portas dos albergues estariam fechadas. Voltamos a passos apressados.
- Seu pescoço está melhor? - perguntou a amiga no caminho.
- O pescoço não. Apenas o pescoço.
Cheguei e tive que bater à porta. Tocar a campainha. Gritar. Bater de novo.
Depois de um tempo, o homem abriu a porta, resmungando:
- Está muito tarde.
- Eu sei. Me desculpe.
Não lhe expliquei que às vezes um dia - e era um ultimo dia e também um primeiro - não cabe nas bordas de um dia só.

24 de março

Coloquei o despertador para seis da manhã e comecei a rolar na cama a partir das cinco. Comi três bananas e saí de casa pouco depois das seis, achando que estava arrasando. Mas parecia que a vida lá fora começara bem antes. O céu já estava claro e as ruas movimentadas.
Caminhei em direção ao Assi Ghat. Todas as manhãs, cedinho, acontece a cerimônia diária, seguida de um concerto e uma meditação. Há um tempo fui ao concerto. Ainda era inverno, estava escuro e ventava muito. Lembro de correr para aquecer o corpo e de ter dor de ouvido. Depois surgiu um solzinho de nada. Saí para me esquentar e deixei a meditação de lado. Vendo-a de fora, achei aquilo tão interessante. Era uma meditação ativa, com muitos pranayamas e movimentos físicos. Era yoga, pra ser mais precisa. Naquele momento, falei a mim mesma que começaria a frequentar os eventos da manhã depois que esquentasse. Quando esquentou, esqueci.
Pois hoje fui decidida a participar ao menos da yoga. Como não lembrava a que horas começava cada evento, saí correndo para chegar a tempo. Cheguei quase no final do concerto. Sentei-me ao lado da mulher do espanhol. Que bem deve ser espanhola também. Mas é que ele se tornou uma das referências das quais eu mais ouvia falar: um barbudo que toca tabla e, há mais de dez anos, passa seis meses anuais em Varanasi. Hoje eles têm um bebê pequeno, com menos de um ano. O bebê estava ali, com ela, engatinhando à vontade. Tive uma invejinha deles.
Éramos os únicos estrangeiros, entre os indianos. A meditação era guiada em hindi. Eu entendia palavras soltas. Olhava pros lados, imitava os outros. "Vou começar a vir todos os dias", pensei. E depois achei aquilo uma idéia besta, já que parto depois de amanhã.
Mas e se...
E se eu sempre fingisse que era meu primeiro dia? E se eu pudesse começar a todo instante? E se todos os caminhos me estivessem abertos?
Não estão?
Nem sei. Sei que passei o dia inconsolável. Talvez por sono. Talvez porque olhasse pra frente. Talvez porque olhasse pra trás. Vaguei pelos ghats e pelas ruas. Fui aos restaurantes de sempre. Evitava olhar nos olhos das pessoas, para que elas não enxergassem através de mim. Mantinha silêncio para não embargar a voz. E, se alguém perguntava se eu estava bem, cuidava para não começar a chorar.
- Quero uma paratha, uma salada grega sem cebola e uma limonada - pedi no restaurante.
O moço esperou eu acabar de falar, para fazer sua observação:
- É só dizer que quer o de sempre, não precisa falar tudo.
Mas como de sempre, se sabia tão diferente?
Forcei-me a comer, porque detesto desperdiçar. Quando eu havia engolido a paratha quase toda, uma mendiga me acenou da janela. Levei-lhe meu último pedaço e lamentei ela não ter aparecido antes.
Já no Dosa Café, ficamos os dois em silêncio. Como se, abrindo a boca, algo se pudesse quebrar. Lembra muito meu pai, esse senhor. Por isso conheço bem essa empatia calada. É um modo de querer bem com medo de se mostrar.
Lembra muito eu, esse senhor.
- Então você vai dia 26?
- Vou.
Mais silêncio. Engraçado que desta vez eu sentia que não era só eu que perigava chorar.
Depois fui encontrar minhas cachorrinhas.
- Agora que sei diferenciá-las, preciso de um nome para elas. - dissera ao meu amigo outro dia - Qual sua sugestão?
- Ek e Do.
Um e Dois. Aceitei.
- Ek tem uma verruguinha sobre o olho esquerdo. Do tem verruguinhas no corpo todo - expliquei.
- Não são verrugas, são carraças, conhece?
- Carrapatos?
- É. E você aí se esfregando nelas - me disse ele, com nojo.
Pois hoje estavam ambas na estrada principal. Ek, ao me ver, contorce-se de alegria. Então pula em mim, tenta arrancar minha saia, morde minha mão. Do está sempre dormindo. Ek esbarra em Do, que fica brava e rosna. Essa cena se repete diariamente.
- Do é apelido de Dorminhoca! - concluí.
Então fui tomar um banho de rio. Eu precisava me desprender de alguma coisa que talvez só o Ganges conseguisse levar. Fiquei ali mesmo, no ponto mais próximo de casa. Havia dois velhinhos, pele escura e longa barba branca, a lavar roupa. Outros dois homens por perto, a construir um barco.
Entrei na água. Ela parecia mais suja do que o normal, provavelmente porque ficava em um recuo.
- São só flores, Lian - eu me dizia. Mas depois vi pedaços de ossos, tenho quase certeza. E pequenas larvas, sabe-se lá de quê. Fui pro meio, onde a água corre melhor e é mais limpa, mas a correnteza me levava. Eu, que não sou grande nadadora, resolvi voltar pra margem. Sentei-me ali, na beirinha do rio, enrolei-me na toalha e comecei a meditar. Batia sol, mas eu estava fresca pelo corpo molhado. Meditei. E meditei.
Depois abri os olhos e comecei a cantar essa música, que tem sido meu mantra: "Que será será. Whatever will be will be. The future is not ours to see. Que será será". Era minha mãe quem a cantava, quando eu era criança. Mas acho que agora ela é oficialmente uma das canções de Varanasi, que tanto cantei pelos ghats. Sobre mim voavam impressionantes revoadas de... que pássaros são esses? Rolinhas, acho. No meio, duas aves brancas infiltradas entre as cinzas. E houve um momento em que vi uma águia.
Eu girava a cabeça para acompanhar as revoadas e cantava, cantava. E doía. E eu cantava mais. Os velhinhos não se importavam comigo. O barqueiro tentou me chamar uma vez e logo desistiu. Deixei cair algumas lágrimas, até esvaziar alguma coisa que... não, não se esvaziou.
Voltei pra casa, tomei um banho, lavei a calça e a toalha, mas joguei fora a blusa que usava. Vestira-a naquele momento propositadamente, já planejando largá-la. Era uma pena. Era a roupa mais antiga que eu tinha e eu me orgulhava de ainda usá-la. Acho que minha mãe a trouxe quando eu tinha doze anos de idade. A minha era branca, a da minha irmã era bege. Na época era grande em mim. Hoje a manga é curta. Larguei-a apenas porque fora rasgada pelos macacos que me atacaram, semanas atrás.
- E já tenho tanta coisa! - pensei, depois, olhando perdida para as roupas sobre a cama.
Como fazer caber em uma mala?
Não cabe. Foram três meses descabidos, transbordantes. Não cabem em um contexto. Não cabem em uma vida. E logo em uma mala, meu deus!
Quisera eu saber deixar para trás. E começar.
Acordar amanhã como se fora meu primeiro dia em Varanasi.
Meus últimos dias em Varanasi têm se resumido a, tontamente, repetir os programas de sempre, os lugares de sempre. Como se eles se pudessem eternizar na repetição dos dias. E estes ganhassem pernas próprias para seguir. Pela lei da inércia.
Almocei naquele terraço aonde íamos de vez em quando, no Assi Ghat. Eu sempre ficava no lado do sol, porque fazia frio. E agora, que já está tão quente, escolhi a sombra. É a rotação dos astros. Ou passagem do tempo, como preferir. Já há até mangas nos mercados, mesmo não sendo, oficialmente, verão. Pensei que não chegaria a provar as mangas indianas. E mesmo que seja só o inicinho das colheitas e que ainda não haja muitas variedades e que a que provei nem seja tão saborosa quanto as do Brasil... Testemunhar sua chegada é doce como ter bisnetos.
Comi o arroz com gengibre de sempre. "Arroz é sagrado" - dissera a um amigo outro dia, quando lhe explicava por que ele não deveria ser misturado com nenhum molho. O outro prato era apenas figuração. Não é à toa que os paulistas o chamam de mistura - descobri recentemente. Apesar de que, repito, no arroz não se deve misturá-lo.
Depois voltei caminhando pela avenida, olhando as lojas, pensando nas últimas compras. Vi alguma roupa em tecido cru e me voltou a obsessão. Entrei para perguntar. O moço mostrou-me algumas blusas:
- Cores naturais.
Eram amarelas e beges, mas não eram, exatamente, cores naturais.
- Eu queria como aquelas do lado de fora.
- Aquelas foram desbotadas pelo sol. Mas você quer comprá-las?
- Não, obrigada.
Assim não valia.
Quando saí, o outro homem que estava na loja veio atrás de mim:
- Você tem interesse por tecidos orgânicos? Venha comigo.
A vida toda na Índia consiste no conflito entre se deixar levar e resistir.
Deixei-me.
Percorremos algumas ruelas até chegar a esse galpão. Havia rolos e rolos de tecidos, embora eu preferisse roupas prontas mesmo. Ele foi me mostrando:
- Estes são os sintéticos. Estes são os de origem animal. E este são os orgânicos, de origem vegetal. Você tem que deixá-los na água antes de mandar fazer a roupa. Porque encolhem depois de molhados.
Saí de lá com dez metros de tecido e sem saber o que fazer com aquilo. Até hoje tenho no armário alguns metros de algodão africano, que nunca se transformou na saia que havia imaginado.
- Você é designer? - me perguntou o homem.
- Não. Na verdade nem sei o que faço aqui.
- Perguntei apenas porque troco contatos com muitos designers, costumo fornecer tecidos a eles.
- De qualquer jeito, me dê seu cartão. - pedi - Nunca se sabe.
Confesso que, vendo os tecidos daqui, penso muito em criar minhas próprias roupas. Sem contar com as tantas amigas que diziam que eu deveria ser estilista. Nunca sei se acredito, pois, ao mesmo tempo em que dizem gostar do que visto, fazem a ressalva:
- Em você. Eu não teria coragem de usar.
Então provavelmente eu seria um fracasso de vendas.
Cheguei em casa e organizei a bagunça. Juntei o excesso de coisas, as roupas de inverno, os livros. Paguei uma fortuna para enviá-los ao Brasil. Andei toda torta até os correios, carregando as sacolas. Parecia uma tonelada. E já eram vinte quilos. Ainda estava ali, sendo embalada, a sitar que meu companheiro português mandara enviar. Cumprimentei-a, como se o tivesse encontrado. O senhor dos correios - um desses que tem um ar inexplicável de dignidade - serviu-me um chai. Fiquei ali preenchendo os papéis. Ele contou-me que estivera doente. Agora já melhorava.
- Todos estiveram doentes. - pensei - Acho que foi o eclipse.
E depois fui esperar a cerimônia no rio apenas porque não queria ir para casa. Nunca fui grande fã dessa cerimônia, em que eles contratam pessoas para fazer um espetáculo diário.
- Ali do lado tem um menino que faz o mesmo ritual, sozinho, todo compenetrado - mostrara-me o amigo espanhol tempos antes.
Mas eu me sentei na escada mais pela espera do que pela cerimônia. Até que a menina fadinha apareceu. Eu amo a voz dela. E amo o fato de ela me deixar mais feliz instantaneamente.
- Você não tem chinelos? - ela me perguntou.
- Tenho, mas estão em casa.
- Chinelos são bons para proteger os pés de coisas que cortam.
Dei-lhe razão, pensando em como era cômodo gostar de andar descalça, quando se tem a opção dos sapatos.
Mudei de assunto:
- Com quem você aprendeu inglês?
- Tenho um guru que aparece de vez em quando e me ensina aos pouquinhos.
- O seu inglês é tão bom! - reparei.
Então ela me contou que não podia ir à escola, porque se tem que pagar quinhentas rúpias "por menina". Sua mãe tem muitos problemas de dinheiro. São cinco filhas e dois filhos.
Eu não soube o que responder. Nem ela esperava resposta. Mas era triste ver uma menina tão inteligente assim sem oportunidades. Não é apenas seu inglês. Logo que a conheci, lá atrás, reparei no olhar estético que ela tinha, quando lhe entreguei minha câmera. Ela foi uma das primeiras pessoas aqui por quem tive afeto.
- Onde está seu amigo? - perguntou.
- Foi embora. - respondi, sem saber de quem ela perguntava - Todos os meus amigos foram embora. Agora estou completamente sozinha.
Falei tragicamente. Minutos antes ela me contara de suas tragédias em tom tão natural. E depois ela seguiu atrás de turistas, para vender seus pigmentos e cartões postais.
Fiquei um tempo pensando se voltaria para casa pelo ghat ou pela estrada. Eu costumava preferir o ghat, mas lembrei de ontem. E, porque lembrei, pensei que então era mesmo questão de honra não me deixar amedrontar. Mas depois achei que era orgulho e burrice. Fiquei um tempo discutindo comigo mesma, até que, antes de a cerimônia começar, bateu fome. Fui - pela estrada - até o Shiva Café, restaurante simpático de donos nepaleses. Os meninos que atendem são lindos - nem no Nepal encontrei bonitos assim. Fazia tempo que eu não aparecia lá. O menino me reconheceu, brincou de não me entregar o cardápio. É um adolescente, mas talvez não seja. Descobri que deste lado do planeta todo mundo parece mais jovem do que é.
Pedi momos. Eram melhores do que os do Nepal. Devorei-os com as mãos e por um momento me enxerguei, de fora: sem talheres e sem sapatos.
- Estou virando bicho. - pensei - Gosto.
Ao anoitecer, me dei conta de que o dia, que se pretendia repetitivo, fora um dia único. Sempre é.
E de manhã, ainda na Universidade, eu pedira um suco de limão na barraquinha de frutas. A senhora apontou-me o açúcar, perguntando se eu queria. Respondi que só um pouquinho. Ela colocou menos do que isso. Até pensei que era melhor assim, pois deixaria de ingerir besteira. Misturei e bebi.
Era sal.
E era até bom, também.
Aprendi que, mesmo na repetição dos dias, a Índia sempre oferece um sabor inesperado.

22 de março

Saí de casa com um destino certo e outro a ser encontrado. O primeiro seria meu cantinho de meditação. A caminhada até lá já faz parte da meditação em si. E era debaixo do sol do meio dia, o que renderia, até hoje, uma bronca da minha mãe. O segundo destino era algum ponto tranquilo no Ganges para me refrescar. Estava à procura de um pedaço de rio onde houvesse mulheres se banhando, de forma que eu me sentisse mais à vontade.
A primeira coisa que descobri é que, nessa vida de ser uma pessoa descalça, a sujeira é o menor dos problemas. Aliás, para quem vai, em seguida, nadar no Ganges em Varanasi (nas cidades ao norte ele é mais limpo), sujeira nem chega a ser uma questão. Mas é que o caminho era longo. E as pedras, àquele horário, queimavam os pés. No fim do dia ele ficaria cheio de bolhas.
Na frente do templo de Shiva, vi um pedaço calmo de rio, com algumas mulheres. Pensei: "vai ser aqui". Mas, mais à frente, vi uma área dominada por búfalos. Meus olhos brilharam. Nadar com búfalos parecia ainda melhor do que nadar com mulheres.
Então subi no meu cantinho e me pus a recitar mantras. O sol estava forte. Fazia dias que eu não meditava e, desta vez, quis enviar luz rosa - Amor incondicional - às pessoas que amo, às que fazem parte da minha vida, às que passaram por ela. Mentalizei luz rosa em cada pessoa que aparecia à minha cabeça. Às vezes apareciam pessoas inusitadas, de quem há muito não tenho notícias, ou que mal conheço. Tudo bem. Um pouco de Amor não faz mal a ninguém.
No final, já estava molhada de suor. Então desci as escadas correndo e me joguei no rio, pedindo licença aos búfalos. Era bonito e um pouco aterrador nadar entre eles. Só saí do rio quando já haviam se acumulado suficientes pessoas em volta, a me observar.
Voltei molhada debaixo do sol, uma das minhas sensações preferidas. Pena que as pedras queimassem meus pés descalços, fazendo com que eu tivesse que correr, saltitar ou simplesmente aguentar a dor, até chegar em casa.
Depois disso ainda tive um dia longo, como se, de súbito, o deus brincalhão devolvesse todas as horas que me roubara nesta cidade.
Sei que no fim do dia saí nova e de banho tomado, decidida a andar quase até o último ghat, onde eu descobrira, havia pouco tempo, um restaurante de comidas vegetarianas e cruas. Meu corpo pedia salada. Eu quis obedecer. Comi com um pouco de pressa, pois não queria voltar no escuro. O que era inútil, porque o sol, aqui, se põe cedo. O ponteiro mal passava das sete, mas já era noite.
Quando comecei a andar pelos ghats, dei-me conta de que era a primeira vez: No escuro. Longe de casa. Sozinha. Era sempre ele quem me acompanhava, aonde quer que eu fosse.
- Mas ele partiu - lembrei.
E, de alguma forma, até achei bom ter que passar por isso. Assumi como missão: a vulnerabilidade. Mas achei melhor quando uma mocinha indiana me abordou:
- Você vai ao Dashawamedh?
- Vou quase lá. Venha comigo.
Ela faz mestrado em Língua Inglesa na BHU. E participa de um projeto independente que se compromete com a limpeza do Ganges:
- Hoje ficamos em reunião até tarde. - explicou - Quando vi, já tinha escurecido. Ainda bem que te encontrei.
Fomos juntas, protegendo uma à outra. Nem são tão escuros, os ghats. E nem vazios. Mas é uma área extremamente masculina. De um masculino agressivo. Hostil. Nós, mulheres, conhecemos bem: andar de olhos baixos, porque qualquer troca de olhar pode ser um convite. Cotovelos abertos para que ninguém se aproxime demais.
Porém, sermos duas nos dava confiança. A humilde confiança de não ser uma só.
Quando cheguei ao Rana Mahal Ghat, nos despedimos. Fiquei com um pouco de pena pelo trecho que ela teria que percorrer sem mim. Subi os degraus pensando nisso. São escadas escuras e labirintos, o caminho de casa, que é na verdade o caminho de quase tudo por aqui.
Nessa primeira escada, tão escura, um rapaz me abordou. Ofereceu-me qualquer coisa, que não entendi o que era. Talvez fosse leitura de mão, pois só compreendia a palavra "hand". Recusei. Ele continuou me seguindo. Recusei duas, três vezes. Já quase na porta de casa, impacientei-me:
- Chaloo! - que é a palavra que se usa para mandar alguém embora.
Então foi muito rápido. Mal entendi, na hora, mas gritei. Ele passou a mão em meu corpo e saiu correndo.
O horror. Toda mulher o conhece.
Olhei, impávida, para a única possível testemunha: um homem a poucos metros dali. Acho que ele não compreendeu nada, senão meu grito. Até eu compreendera apenas o grito.
Enquanto subia as escadas do prédio, só conseguia pensar que não vira seu rosto, no escuro e no olhar sempre baixo que mantemos por aqui. E que jamais o reconhecerei se ele cruzar comigo na rua.
Entrei no quarto e chorei como bebê.
Um dia fujo com os búfalos.

21 de março

Está aberta a temporada de despedidas.
Hoje partiu a primeira pessoa que deixou um buraco fundo. Preferi assim, é verdade. Que tenha sido ele a ir embora primeiro. Que tenha sido eu a ficar.
Ele foi um marco na minha estadia em Varanasi. Foi meu protetor e família.
Tenho pra mim que foi o belga gigante que o nomeou meu guardião. Os dois caminhavam juntos, eu passei por eles, mas não lembrava seu nome:
- Oi, português! - cumprimentei-o.
Eu ia ao Manikarnika, o principal ghat de cremação. Eles resolveram me acompanhar. Eu estava fascinada pela história do belga, que resgatara uma águia ferida no dia anterior. Ele era grande e falante. Nunca havia ido ao Brasil ou a Portugal, mas falava um pouco da nossa língua:
- Por causa do Santo Daime - explicou empolgadíssimo.
Sabia cantar os hinos do movimento, dizia que precisava conhecer o Brasil, falava na vacina do sapo e repetia, em português mesmo:
- Sincretismo! Sincretismo religioso!
E depois contou, com orgulho, como alguém o definira: "violento cordial". Era bem isso. Talvez pelo porte e pela energia de fogo, havia violência em seu falar, mesmo falando de coisas boas e belas.
- Mas amanhã me mudo pra Sarnath. - contava - Pra cuidar da águia e ficar em paz. Varanasi me deixou mais agressivo do que o normal.
Ele contava que estivera vários dias com uma amiga, protegendo-a.
- Varanasi é muito hostil para mulheres. - continuou - E como eu entendo hindi, sei a intenção de todos que se aproximam. Não deixava ninguém chegar perto dela e estava constantemente em posição de ataque. Hoje ela foi embora. E eu preciso me aposentar dessa função, já me tornei agressivo demais.
E completou, apontando para o português:
- Mas ele pode assumir esse papel. Você vai precisar de alguém que te acompanhe.
Assim foi.
Marco, seu nome. Pra mim ele foi o marco de muitas coisas. Foi quem me levava aos concertos de música e me acompanhava em segurança até minha casa. Foi quem me apresentou a barraquinha de rolos de ovos com legumes e com quem, mais tarde, decidi ir ao Nepal. E era quem me obrigava a comer muitas frutas, de manhã:
- Come uma banana.
- Não quero.
- Só uma.
- Banana é seca.
- É molhada!
Nós tínhamos crises de risos e eu acabava por comê-las. Acho que ele foi a única boa influência alimentar que eu já tive, já que, entre meus amigos, costumo ser eu a de hábitos mais saudáveis.
Ele gostava de elementos da cultura brasileira que eu desconhecia. Escutava Grupo Revelação. Falava-me de um grupo de humor chamado "Os barbixas ". Eu lhe explicava que muita gente no Brasil torcia o nariz para tudo isso, e que era interessante que ele, por ser de fora, viesse sem preconceitos. Mas não, não consegui gostar d'Os barbixas.
Mostrei-lhe Caetano, Belchior e Zeca Baleiro. Expliquei-lhe que em Varanasi ninguém se importava se desafinávamos ou se éramos ridículos. Nos permitimos ser. Cantávamos alto pelas ruas e ensinávamos um ao outro nossas canções de infância.
Escolhemos o mesmo mestre: ele aprendia sitar, e eu, meditação com mantras. Íamos juntos, dividindo tuk tuk. E voltávamos comentando:
- Esse guru trapalhão!
Passei-lhe referências de meus escritores preferidos: Clarice Lispector, García Marquez, Milan Kundera, Eduardo Galeano. Ele me enviou uma mensagem quando leu o conto "Os desastres de Sofia".
- Você tem sensibilidade para ser tocado por Clarice - constatei.
Falávamos mal do sistema. Compúnhamos músicas, escrevíamos textos coletivos e poemas. Coloríamos, montávamos quebra-cabeças e ensinei-lhe a fazer mandalas.
Ele deu sentido à canção que aprendi na infância: "Indo eu, indo eu a caminho de Viseo..." Ele vinha de lá, de Viseo.
- Ah, nunca soube que era o nome de uma cidade! - espantei-me - E me diga... O que significa "indueu"?
- São duas palavras: "indo" e "eu".
- Ah!
Eu aprendera essa canção quando pequena, nas aulas de iniciação musical, e a letra me parecia um amontoado de palavras sem sentido.
- Nunca conheci outra pessoa que também soubesse essa música! É tão da minha infância!
Eu imitava suas expressões do português de Portugal. Ele ria do meu sotaque brasileiro.
- Quem diria que eu viria a Varanasi para aprender português! - dizíamos ambos.
E os dias se passaram tão rapidamente quanto intensos.
Ele estava adoentado desde que voltara do Nepal. Iria encarar mais quarenta horas de trem. Colocou tudo dentro da mochila, as pedras só pesando, e fomos almoçar juntos. Eu cismei que ele precisava conhecer Vinicius de Moraes e Toquinho. Mostrei-lhe Aquarela: "Numa folha qualquer eu desenho um sol amarelo... que descolorirá... E com cinco ou seis retas é fácil fazer um castelo... que descolorirá..."
Enquanto não dava sua hora, ficamos jogando xadrez no restaurante. Incomumente, ganhei as duas partidas. Normalmente era sempre ele quem ganhava. Sua cabeça doía.
- Quando entrar no comboio - eu imitava seu sotaque português - faça uma meditação com luz violeta. Prometo meditar daqui e te enviar essa luz também.
Segui um pouco com ele pela rua e depois o deixei seguir sozinho. Quando virei as costas, minha garganta apertou, mas não chorei. Fui andar pelos ghats e saí caminhando rápido e leve, com meus novos pés descalços. Andei para um lado, voltei, andei de novo. Não quis me permitir ser atacada pelo sentimentalismo e por isso era tão necessário: andar.
Parei apenas quando encontrei uma cerimônia gigante. Não sei do que se tratava, mas eram homens jovens, enrolados em panos, que liam um livrinho e colocavam uvas passas em um prato. Havia caixas e caixas de passas. E eram muitos homens. Eles acompanhavam um mantra que saía da caixa de som.
Sentei-me ali mesmo e fiquei a escutar o mantra. Deixei a cabeça esvaziar, quase hipnotizada. Então me lembrei do meu amigo e visualizei-o em luz violeta. Mandei-lhe as minhas vibrações. Era fácil, porque ao longo do rio tudo vibrava.
Depois senti fome e quis ir aos restaurantes de sempre, porque o mundo continuava. No caminho, entretanto, vi um homem vender uma comida de rua - nunca aprendi o nome. É um bolinho de batata amassado com vários molhos e vegetais e uma casquinha crocante por cima. Comi uma e saí de lá sem saber se estava tonta da pimenta ou da ausência.
Fui ao restaurante mesmo assim:
- Uma salada grega. Sem cebola e sem paneer (o queijo bom e leve indiano).
- Sem paneer? - estranhou o moço.
- Só por hoje. É que hoje eu preciso de vegetais.
E depois, em vez de comer sobremesa, fui direto ao Baba Lassi. As crianças da família estavam por ali. Fiquei um tempão só falando e brincando com elas, antes de voltar para casa. Levava bananas, para não passar fome à noite. Molhadas.
Está aberta a temporada de despedidas. E em breve serei eu a partir.
Tento conviver com os buracos e aceitar os vazios e suportar o tempo e transmutar as energias com luz violeta, como aquarela.
Que um dia, enfim... descolorirá.
A ideia me ocorrera há uns dois dias, assim na rua, de repente:
- Por que não?
Andam descalços a maioria dos indianos por aqui. Eu me espantava, porque a primeira coisa que chama atenção em Varanasi é que os chãos são sujos. Em dias de chuva, especialmente, são completamente tomados por uma mistura de lixo, lama, excrementos de vacas e de cachorros. Em dias assim eu caminhava me equilibrando nos chinelos, escolhendo com todo cuidado onde pisar. E ainda assim molhando os pés.
Agora, com dias ensolarados, as ruas tornam-se convidativas. E eu admito que mesmo na lama invejava a liberdade daqueles que, descalços, não se importavam. Por isso me veio a vontade: uma libertação.
Eu sempre gostei de caminhar descalça e de sentir o solo sob meus pés. Gosto das pedras frias. E gosto das pedras quentes. E, sobretudo, não gosto de nada que me tire a sensibilidade e que, de uma maneira ou de outra, me anestesie perante o mundo.
- Botas são tanques de guerra - eu já pensara e escrevera em um texto, tempos atrás. Porque tenho o costume de fazer trilhas descalça e porque percebera que, calçada, podia pisar em tudo - nas plantinhas e nos galhos - sem sentir. E que esse pisar sem também se afetar é a própria lógica do Poder.
Eu sempre quis, de alguma forma, esse mundo: de pessoas descalças. Essas que se sujam, se ferem e são tocadas por tudo o que tocam.
Por tudo isso, ou talvez apenas pelo tato da pedra sob os pés, ocorrera-me a ideia de que dia desses livrar-me-ia dos chinelos. E seria livre como eles, os indianos.
Pois foi hoje que aconteceu. Eu andava em direção a um lugar qualquer e, no meio do caminho, decidi:
- Chega disso.
Guardei os chinelos na mochila e segui de pés descalços.
É uma sensação boa, como se subitamente eu ganhasse um sentido a mais. E é, realmente é libertador.
- Agora você vai pisar em um monte de xixi - me disse meu amigo, quando resolvi ir ao banheiro do restaurante.
Mas não se pode mergulhar pela metade. Quando se assume o chão, é com a dor e a delícia, diria Caetano.
E quando, na saída do restaurante, dei-me conta de que não precisava me calçar, como sempre fazia ao descer do tatame, exclamei:
- Olha que delícia, agora sou uma pessoa descalça!
A gente não vive a beleza das possibilidades sem se sujar um pouquinho.

20 de março

Uma das melhores coisas que aprendi com a minha terapeuta foi a escutar o corpo. E, assim, compreender as trocas energéticas que eu tenho com as pessoas. Identificar os vampiros: aqueles que me sugam. Não que sejam pessoas más ou nada parecido. Mas apenas: quem tem menos tira de quem tem mais. Quando se tem de sobra, não há problema. A questão é que há momentos em que já temos pouco e, aí, proteger-se torna-se vital.
Escutar o corpo. Identificar o que sinto. Onde sinto. Saber quem me tira a energia e quem me dá mais vontade de viver. Às vezes é um respirar pesado, o sinal. Um sufocamento. Às vezes, borboletas no estômago. São bons ou maus? Nada é óbvio. E nada é uma coisa só. Mas estão no corpo todos os indícios.
Desta vez acordei com menos. Ou acordei normalmente, mas senti a energia que me foi tirada logo de manhã.
- O dono do hotel quer falar com você - chamou-me um funcionário do albergue, tão logo saí do meu quarto.
E já foi me levando, assim desavisada, para o hotel ao lado, onde fiquei hospedada em meus primeiros dias. Cheguei chateada pela maneira brusca com que fui abordada e confesso que um tanto preocupada, mesmo sem ter motivo para isso. O velho medo de professores e síndicos.
Ele queria apenas que eu adiantasse o pagamento. Ainda tentou somar dois dias a mais ao meu cálculo e, quando fiz questão de contar dia por dia, ironizou:
- Você pode fazer as contas de uma vez. Você estuda na BHU!
Feitos os cálculos e definido o justo valor, ainda tive que esperar a máquina do cartão funcionar. Os planos que eu tinha feito para a manhã, dissolvendo-se junto com o tempo tão escasso que me resta em Varanasi.
- Shanti, shanti! - ele dizia, pedindo paciência.
Mas é que, quando você não está calma, pedir calma é muito pior. Saí furiosa. E depois, quando fui cuidar da vida, já havia sido afetada pelas desagradáveis horas perdidas.
Então me sentei em um ghat próximo de casa. Precisava recuperar a energia perdida, mas, não sei por que instinto, fiz o contrário de me proteger. Falei com todo mundo que veio me cumprimentar, sem me perguntar quais eram suas intenções. E, talvez porque o universo sempre saiba uma resposta certa pra te dar, aconteceu de virem com pureza, todos que se aproximaram.
Sorri para quem quer que passasse. E depois sorria de novo, pela alegria de seus sorrisos, como em um jogo de espelhos.
Uma estrangeira aproximou-se e me pediu para posar para uma foto, segurando um cartaz de felicitações a sua irmã. Concordei alegremente.
Dei esmolas a todos os mendigos que passaram por mim. E também dei dinheiro ao senhor que manipulava uma marionete. Mal chegava a ser um espetáculo, em sua simplicidade. Mas já era bonito ele não usar seres vivos, como tantos o fazem para sobreviver.
E depois encontrei o falso baba, que me chamou a tirar uma foto com ele. Fui e ficamos brincando e então apareceu Kjala, minha amiga fadinha, que se juntou a nós. Fazia tempos que não a encontrava e fiquei tão feliz. Comprei seus cartões postais apenas porque gosto dela. Eram vinte rúpias, mas dei-lhe cem.
No fim do dia, voltei para casa mais leve. Senti no corpo: a respiração e o passo. E a vontade de viver. Estava cansada. Mas, ah, a força.
Existe uma matemática estranha que faz com que se receba quanto mais se dê.
Ou apenas o que eles tinham para trocar fosse muito maior e mais valioso do que tudo o que eu tinha.