quinta-feira, 8 de janeiro de 2015

A luz



Eu estava no Dosa Cafe, esse lugarzinho que elegi há mais de um ano. Na mesa ao lado sentou-se um finlandês, de camiseta. Na outra mesa, um casal de canadenses. E, como eram só três mesas, os dois holandeses que chegaram acabaram se sentando comigo. Não tinha importância, porque àquela altura todos nós conversávamos animadamente. Era um cubículo pequeno, o que tornava tudo mais aconchegante.

Eu sentia frio, mas o finlandês (de camiseta, repito) dizia que aquela era a temperatura do verão no seu país. Ele me contava que, em seu inverno, tinham apenas quatro horas diárias de luz, mas que o verão eram três meses iluminados vinte e quatro horas por dia.

Eu não sei o que eu faria com dias inteiros iluminados, mas me vejo assim: como uma errante desvairada. Porque não consigo voltar para casa enquanto há luz do sol. E mesmo o horário de verão do Rio de Janeiro me segura na rua até o último raio de luz, às oito da noite.

E, como falávamos em sol e eu me inundava com a ideia de luz infinita, eis que ela apareceu, como que por um milagre. Não era forte, mas era a luz do sol. E era infinita.

Paguei minha conta e saí a andar pelas ruas.

Preciso explicar que em Varanasi (e na Índia, de uma maneira geral) é quase impossível andar sozinha pelas ruas. Há sempre alguém te seguindo, convidando para olhar sua loja, para tomar chai, perguntando de onde você vem, para onde você irá, quais são seus planos para amanhã e depois e depois.

Mas, como o sol saíra, eu conversei feliz com todo mundo que se aproximou. E aprendi apenas um segredo: dizer à pessoa, honestamente e sem grosseria, que não gostava de ser seguida. E pronto. Eles diziam “oh my god”, despediam-se e saíam, não sem antes me convidar para o chai do dia seguinte.

Mas fazia sol. E eu estava radiante. Então fui caminhar ao longo do Ganges e fazer uma das coisas que mais gosto de fazer na vida: retratos. De pessoas, de cachorros, de bodes, de vacas e de búfalos. Eu gosto de retratos porque para mim os seres são bonitos. E têm uma textura e uma luz e uma nobreza. Pois eu fazia retratos e falava com as pessoas. E constatava que, ao contrário do que dizem, o esporte nacional indiano não é o rúgbi, mas a pipa, com seus meninos e seus homens compenetrados na importante tarefa de manter um papel colorido no ar.

E eu fui andando pelos vários ghats, ao longo do rio. Até que a luz caiu e resolvi voltar. E eu estava feliz e radiante e comunicativa. Mas houve um momento em que um homem passou ao meu lado. E ele falou grosseiramente ao meu ouvido: “very sexy”. Eu juro que desmontei. Eu juro que quis chorar e de repente não queria mais falar com ninguém. Porque faço questão de que não vejam menos do que minha nobreza. Não de classe, não de escolaridade, não de aparência, nem nada disso. Mas minha nobreza despida: essa de ser humano. Ou melhor: de ser vivo.

Levei alguns passos para me reestruturar, neste percurso em que um homem qualquer te faz mergulhar da luz à sombra. E aí você enxerga a sombra, reconhece-a, aceita-a, toma fôlego e sobe de novo à luz. Foi o que fiz, ancorada subitamente por uma lua cheia e imensa que aparecia no céu.

Caminhei hipnotizada pela lua grande e amarela. E, ao chegar à altura do meu alojamento, resolvi procurar um lugar para ficar por ali mesmo, sentindo a força do rio – nada menos do que o Ganges – e do luar. Sentei-me em uma quina, não sei por quanto tempo. Sei que repente havia pessoas ao meu lado. E que um barqueiro puxou assunto e ficamos ali, conversando. E logo um outro moço entrou na conversa. Era um moço moreno, jovem e bonito, que parecia saído de um filme de sessão da tarde. Seu nome era Monu, e foi assim que ele se me apresentou:

- I’m a holy man.

Eu diria que tenho dificuldade para aceitar sempre que alguém se apresenta como santo, sagrado, iluminado ou coisa parecida. Mas não posso bem falar em “sempre”, porque acho que esta foi a primeira vez em que isso me aconteceu. De qualquer jeito, nunca entendi muito quando me falavam coisas do tipo: “ desde que o guru fulano de tal atingiu a iluminação...”. Não penso em iluminação como graduação, assim como não a vejo como elevação, mas sim expansão. E a gente se expande no mundo, não fora dele.

Mas o fato é que ali estava Monu, e ele me parecia mesmo sagrado. Não da sacralidade dos especiais, na qual não acredito, mas da sacralidade de todos os seres. E havia uma lua linda no céu e, naquele momento, eu me deixei ser conduzida pela conversa.

- Este é meu guru, não-sei-o-quê-Baba  (ou Baba-não-sei-o-quê) – e apontou para o homem sentado ao seu lado.

O guru. Acho que a melhor maneira de visualizá-lo é pensar no Chico César, o cantor. Um Chico César afetado, enrolado em um tecido laranja, com um enorme turbante na cabeça. Durante alguns momentos da conversa, o guru me olhou seriamente com um olhar lateral. Nos outros momentos, ele apenas tossia seco. Quando falava, provavelmente em híndi, tinha uma voz rasgada de quem fumou a vida inteira. Falou alguma coisa, que Monu traduziu:

- Ele disse que amanhã vai parar de fumar.

E Monu me perguntou duas vezes se eu não fumava. Eu disse que não. Ele me olhou por mais tempo. Eu repeti que não fumava. Nada.

Ele me falou de uma montanha por perto e também da cidadezinha de Bodh Gaya. Eu lhe disse que queria conhecer ambas. Ele falou que me levaria. Perguntou se eu meditava e se eu praticava yoga. Um pouco, sim, respondi. Ele disse que poderíamos praticar juntos e que me ensinaria várias posturas. E mostrou seu tórax e disse que não precisava de cobertores, pois se aquecia com a respiração de yoga: “eu estou conectado” – explicou. E se colocou na postura de lótus e se equilibrou sobre os dois braços.

E quando resolvi me levantar para ir embora, ele perguntou quando iríamos juntos para a montanha. Expliquei que acabara de chegar e que vim para estudar, então não sabia ainda quando teria tempo para passear. Então ele me olhou muito sério e questionou:

- Qual é seu problema?

- Eu não tenho problema.

- É que eu estou vendo aqui – e apontou para a região do meu cenho – e não vejo luz.

- Você está me olhando e não vê luz?

- É.

Por um momento eu tive dó. Pois bem sei que até um ser como eu, em minha infinita pequeneza, tem alguma luz. E até eu vejo que todos os seres são nobres e sagrados.

Antes de eu ir embora, ele ainda me perguntou:

- Você não vai deixar nenhuma contribuição para o Baba?

- Hoje não.

E fui embora banhada de luz do sol e da lua. Pena que ele não pôde enxergar.


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