domingo, 4 de janeiro de 2015

Da (im)permanência



Chovia.

Fiquei tentada a almoçar no restaurante do hostel, mas havia também aquela busca que eu queria fazer: encontrar as referências que eu guardara da visita anterior. Salvei em meu celular os mapas de três lugares: Yoga Training Center, Dosa Cafe e Blue Lassi. 

No primeiro eu fizera uma aula de yoga e decidi que seria minha escola durante esses três meses. 

No segundo eu almoçara quase todos meus dias em Varanasi, da primeira vez em que vim. Dosa é uma espécie de panqueca indiana, e a de lá é a melhor que já comi. O lugarzinho era simples, apenas um cubículo pequeno com três mesas. O dono era um senhor contido, o que costumo chamar de simpático por dentro. Sempre preferi os simpáticos por dentro aos simpáticos por fora. Ainda havia uma sobremesa deliciosa criada por ele, um idli (espécie de bolinho) de chocolate. O preço das refeições era baixíssimo. E o lugar me ganhou de vez no dia em que apareceu uma vaca. Ela parou e colocou a cabeça dentro da porta, esperando. O dono do restaurante contou que fazia alguns meses que ela aparecia ali diariamente, ele lhe dava uma dosa, que ela comia e saía a andar. Achei aquilo curioso e doce: uma vaca solta pela rua que sabia que, em um estabelecimento específico, havia sempre um senhor que lhe ofereceria comida com as mãos.

E por fim o Blue Lassi, um lugarzinho também simples, como o é tudo em Varanasi, e azul, como diz o nome. Lassi é o iogurte indiano, presente em todos os lugares, o tempo todo, e que pode ser servido doce, salgado, com frutas, com condimentos e com vários etecéteras possíveis. Eu, que não sou tão afeita a derivados de leite, aderi rapidamente ao hábito do lassi. Costumava pedir o “masala lassi”, ou “special lassi”, que era misturado com açúcar e condimentos como cardamomo e açafrão.

Certa vez, em Pushkar, acordei e pedi um “special lassi” no restaurante do hostel. O atendente questionou:

- Special lassi? De manhã?

- Por quê? Não se toma special lassi de manhã?

- Não.

- Está bem, então me traga um sweet lassi. – pedi, já pensando em todas as vezes em que, por ignorância, desrespeitei a cultura local.

Porém, ainda curiosa, perguntei:

- Afinal, do que é feito o special lassi?

- De maconha.

- Ah.

Entendi enfim de quantos possíveis sabores um lassi podia ser.

Mas voltando ao Blue Lassi...

Era um lugarzinho assim simples e assim azul. O moço ficava sentado ao lado da porta, batendo o iogurte à vista de todos. Havia várias opções de sabores, e o meu preferido era o de romã (“anaar”, a única palavra em híndi que aprendi). Era um lugar um tanto surreal, em parte pelo estranho ambiente azulado, em parte porque ficava no trajeto do Ghat das cremações, de forma que, enquanto tomávamos nosso lassi, víamos pessoas passarem carregando defuntos o tempo inteiro.

Pois desta vez saí à procura dessas três referências. Estava decidida a almoçar a dosa, depois tomar um lassi e talvez identificar a escola de yoga, quiçá já me inscrever para as aulas. Por causa da chuva, o chão estava mais lamacento do que o normal (“Aquilo não é lama!” – diria mais tarde Umi, o senhor de Delhi que, àquela altura, já poderia ser chamado de amigo, defendendo, não sem razão, que Varanasi é a cidade mais suja que já conheceu). 


Durante vários momentos, acossada pelo barro, pensei em voltar. Mas sujava meus pés e seguia. Até chegar a um ponto em que era inútil pensar em voltar, tão perdida que já estava. Foi aí que me ocorreu que talvez eu não devesse procurar as referências de antes, pois era impossível repetir o passado. E que eu deveria me abrir para aquele mundo absolutamente novo que se abria diante de meus olhos. Dei-me conta de que Varanasi era muito maior do que eu imaginara e me consolei pensando que eu não viraria menina de rua. Sempre que me perco, lembro que sou adulta e que não preciso do desespero da infância, em que se perder dos pais representava a possibilidade de me tornar menina de rua. Pois saí quase segura de minha adultice, andando entre os vendedores que tentavam me puxar para suas lojas, os motoristas de tuk tuk que queriam me levar sabe-se-lá-para-onde e os rapazes que sabe-se-lá-por-quê puxavam assunto a todo custo.

Até que, entrando por uma ruela, ouvi vozes ritmadas de homens atrás de mim. Imaginei o que aquilo significava e olhei para trás: eles carregavam um corpo, coberto, como os outros, por tecidos vibrantes. Mas aquilo significava um pouco mais: significava que eu estava perto do Blue Lassi. Segui por aquela rua e constatei que estava certa. Lá estava o moço batendo o iogurte de sempre. Tirei os chinelos e entrei. Pedi o lassi de romã. Olhei em volta e tudo aquilo me parecia ainda mais estranho do que já fora. Na parede, várias fotos e mensagens deixados por turistas de todo o mundo. Eu, que não deixara um sinal, via fantasmas por todo lado: de um alguém que fui há pouquíssimo tempo. De um alguém que não era mais, que nunca mais seria.

Saí de lá um tanto nostálgica, um tanto enjoada, não sei se do lassi ou de uma certa angústia, que subitamente se formara. E, como essa porta do passado se abrira, magicamente cheguei à porta do Dosa Café. Entrei. Procurei no cardápio aquele que, em um passado recente, fora eleito meu prato preferido. Reconheci-o ali: o special masala dosa.

Enquanto meu prato não chegava, comentei com o senhor, aquele mesmo:

- Eu estive aqui há um ano...

- É, eu me lembro de você. – e fez um sinal, mostrando que se lembrava do meu rosto.

- Naquela época tinha uma vaca... Ela ainda vem?

- Vem sim. Quase todos os dias.

Sorri. Mais de um ano se passara, quase nada na minha vida permanecera o mesmo, desde então.

Mas a vaca ainda vinha.

E aquele homem ainda se lembrava do meu rosto.

Alguma permanência, em meio a tudo.

Comi minha dosa com duas limonadas, forçando para colocar pra dentro o que quase não entrava, tão cheia eu já estava do lassi misturado com passado. Ficamos eu e o senhor naquela sala agradavelmente silenciosa, enquanto, pela janela, eu via a vida passar. Passavam vacas e passavam meninos. E, enquanto tudo passava, eu percebi quão ilusória era a permanência, mesmo a da vaca, que voltava diariamente.

- Hoje ela já veio?

- Já. Hoje ela veio por volta de onze da manhã, comeu sua dosa e passou.

Sorri diante da constatação: Tudo, tudo passa.

E um dia também as lembranças passarão.

Um comentário:

Anônimo disse...

Lian, há algum tempo te achei no facebook e cheguei a salvar uma foto que havia me tocado. Em um outro momento, anos depois li um relato seu sobre uma vivencia na chapada dos veadeiros e apenas dpSp de mais um tempo associei as duas coisas. Desde então me encantei pelos seus relatos, tao cheios de cor, de alma, de cheiro e gosto e inclusive com a leitura da sua ultima publicação, me peguei hj em vários momentos imaginando se VC já estaria devidamente agasalhada..RS OBrigada por dividir suas experiências e me permitir viajar com vc. Barbara