quinta-feira, 5 de fevereiro de 2015

Acordei de mau humor. Era TPM mesmo. O bom de entender o ciclo hormonal é que começamos procurando motivo no mundo para nos sentirmos daquela forma e de repente nos damos conta: “Peraí, que dia é hoje?” Aí a gente continua se sentindo um lixo, mas pelo menos sabe que vai passar. 

Acontece que estar de TPM e estar em Varanasi ao mesmo tempo pode ser muito intenso para uma pessoa. 

Quando me dei por mim, estava folheando meu guia da Índia, em busca de um plano de fuga. Um buraco qualquer para me esconder, onde ninguém me encontrasse. Primeiro pensei em passar o dia trancada no quarto. Mas havia todas aquelas vozes ao redor e eu continuava me sentindo tão ali.

Então me veio à cabeça: Sarnath.

É o lugar onde Buda teria proferido seu primeiro sermão e fica a aproximadamente uma hora daqui. Já em meus primeiros dias eu havia tentado identificar os lugares próximos para viagens curtas. Sarnath era o mais simples. Mas, não sendo budista, nunca havia me batido uma vontade real de ir até lá.

Hoje bateu.

Então tracei minha estratégia: “ando até o restaurante fingindo que sou invisível, almoço e depois pego um rickshaw até Sarnath”.
Andei até o restaurante. Cabeça baixa, braços cruzados. O rosto ainda inchado de chorar – sim, eu chorei pela manhã. Mas acho que meu plano de invisibilidade não funcionou tão bem, porque no caminho um homem se dirigiu a mim. Não era indiano, ou pelo menos não aparentava ser, com seus cabelos loiros e grandes olhos azuis. Ele tinha algo enrolado em um pano e veio me mostrar:

- Uma águia.

- Uma águia?

- É. Ela vai ao médico.

- Ela vai ao médico?

Eu acho que fiquei uma eternidade de centésimos de segundo presa naquela dimensão do absurdo, do não entendimento.

Mas ele continuou:

- Você pode doar dez rúpias para o tratamento médico dela?

Aí entendi. Um golpe. Saí andando e pensando que era uma pena que aquela ave fosse escravizada assim.

Entrei no restaurante, comi minha dosa, tomei meu chá. Perguntei pela vaca:

- Ela já passou?

Já. E soube também que hoje a vaca teve frio. Depois comi minha sobremesa observando os filhotes de vira-latas lá fora. Quando eu cheguei, eram pequeninos e magrelos, com as costelas aparecendo. Hoje estão maiores e quase gorduchinhos. Sempre me arrependo por não tê-los fotografado logo no primeiro dia, para comparar daqui a três meses.

Então saí do restaurante e fui procurar um rickshaw. É incrível como o mau humor nos dá uma ótima capacidade de negociação.

- Quanto fica pra ir pra Sarnath?

- Ida e volta, seiscentos.

- Não! – e saía.

Eles me seguiam:

- Espere! Qual é a sua proposta?

- Eu não tenho proposta! Eu não quero!

Vinha um outro:

- Quinhentos!

- Não!

Quase fechei com um. Mas, antes de sair, ele perguntou:

- Quanto tempo você pretende ficar?

- Não sei.

- Meia hora? Uma hora? Duas horas?

- Como vou saber, se nem estou lá?

E desci do veículo. O motorista gritando que eu esperasse, os outros todos me seguindo, e eu andando impaciente.

- Vamos negociar!

- Não estou a fim!

No fim, fechei com um por quatrocentos, e ele que me esperasse o tempo que eu quisesse, pois, se eu ia a Sarnath, era para buscar paz.

Sobre o caminho... dizer o quê? Era Índia. Eram motos e carros e bicicletas e pedestres e vacas e bodes e cachorros, todos em todas as direções. Houve um momento em que olhei para um cão acuado entre as motos que passavam e a parede. Ele parecia querer sair de lá, mas estava completamente espremido.

Encontrei-me com ele em pensamento: “Esse mundo dos homens não é fácil!”

Depois chegamos a Sarnath e eu fui caminhar.

- Você quer um guia? – me perguntou um... guia.

- Não, obrigada.

Dois minutos depois ele reapareceu:

- Olha, eu não sou exatamente um guia, eu sou um budista que...

- Escuta, eu não quero um guia, nem um budista, nem ninguém. Eu só vim até aqui porque eu preciso ficar sozinha, você entende?

Acho que não entendeu, mas saiu mesmo assim.

E de repente eu estava em um lugar amplo e tranquilo. Havia uma grande Stupa, algumas ruínas, um grande Buda, uns templos. Havia alguns poucos turistas e monges budistas que não queriam guiar ninguém. E havia, sobretudo, muitos jardins. E uma imensidão de silêncio.

Lá fiquei. Perdi-me em um tempo interno e penso que, no tempo do relógio, nem era tanto assim. O motorista ficou feliz ao me ver voltar:

- Já?

O suficiente.

Sei que, seja lá o que eu fora resgatar em Sarnath, estávamos salvos. Cheguei a Varanasi quase calma. Quase leve. Encontrei na rua duas brasileiras que eu conhecera ontem. Elas estavam paradas em frente a uma loja, e o dono nos ofereceu uma comida de rua – o que era aquilo? Tão, tão bom. Depois fomos nos sentar ao Ganges e elas me apresentaram a vendedora de chai de sua confiança.

- Ela não prepara o chai com a água do rio? – perguntei, lembrando o que um amigo finlandês me contara sobre os vendedores de rua.

- A água é do rio, também.

- Tudo bem, então.

E ficamos naqueles degraus conversando. Era bom que elas fossem brasileiras. E era bom que elas fossem meninas. E que, bebendo do Ganges, eu restabelecesse a confiança no mundo dos homens.

Sabendo que amanhã é um novo dia.

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