terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Dizem que nunca se sabe como vai ser até que você mesma se torne mãe.
Mas, até que esse dia chegue, às vezes me dou o direito de projetar. Confesso que sempre me imaginei deixando meus filhos muito livres, que é como fui criada. Lembro de certa vez comentar com minha mãe:
- Eu acho que tem que deixar as crianças se machucarem mesmo. É assim que se aprende. Tem que cair, ralar o joelho, bater a cabeça...
Minha mãe concordou:
- É mesmo...
Mas completou:
- ... só não pode morrer, né?
Dei risada da observação inesperada. Mas ela tinha razão.
Desde a primeira vez que vim à Índia, espantei-me com as crianças, tão livres e espertas. "Por aqui não há frescuras" - pensei - "e, veja só, estão vivas e saudáveis". Desde então comecei a defender essa ideia: "As pessoas deveriam ter seus filhos na Índia e criá-los lá até uns sete anos de idade, pelo menos. Aí poderiam voltar para seus países. Crianças criadas na Índia não ficariam doentes, pois desenvolvem muitos anticorpos, não são atropeladas, porque aprendem a ser espertas em meio à confusão, e não fazem manha. O mundo assim seria melhor."
- Muitas delas morrem sim. - explicou-me, porém, uma brasileira que mora no país. - A taxa de mortalidade infantil é altíssima. E morrem por besteiras, como diarreia e coisas do tipo. Mas você tem razão: se sobrevivem até os sete anos de idade, aí não ficam mais doentes.
Fiquei pensando nisso ao ver uma mulher recolher a água suja do rio em uma mamadeira e entregar ao seu bebê, algumas semanas atrás. Ao seu lado, alguém lavava roupa, mais além havia as cinzas e os corpos, mais ainda, o Assi River, cheio de lixo, que desaguava ali e mais, mais além de nossa vista, todas as indústrias que poluem as águas que ali chegam.
Fiquei espantada com a cena e, mentalmente, desejei saúde à criança.
O fato é que continuo me surpreendendo com as crianças aqui, tão soltas e espertas. E me surpreendi com o garoto que veio falar comigo, quando me sentei à rua para comer um roll à noite, depois do concerto:
- Você vem todas as noites, né? Eu sempre te vejo aqui.
- Tenho vindo muito, sim. - respondi.
Ele me fez mais perguntas e ficamos um tempo conversando. E o engraçado é que ele parecia um hominho, com todos os trejeitos, o balançar de cabeça e o jeito de fazer piadas dos homens daqui. Mesmo a malícia, que não deixa de ter um quê de inocência.
"São pequenos adultos" - pensei. E depois pensei melhor e me dei conta de que os adultos também são grandes crianças, quando soltam pipas compenetrados, quando brincam uns com os outros e mesmo quando contam mentiras de uma maneira tão ingênua.
São todos iguais por aqui, as crianças que endurecem tão cedo e os adultos que nunca abandonam de todo sua criança.
Às vezes penso que Guevara esteve na Índia. "Hay que endurecerse pero sin perder la ternura jamás" - é um insight que só pode ter nascido aqui, entre essa gente que sobrevive nos extremos da brutalidade e da delicadeza.
- Só não pode morrer - dissera minha mãe em sua sabedoria.
Concordo.
É preciso um mundo em que o adulto nasça sem que a criança morra. Jamais.

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