terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

Fui correndo tomar um lassi porque não tive tempo de almoçar antes do concerto. O que se passou? Nem sei. Sei que o tempo passa e que continua acontecendo: essa passagem pluridimensional das horas.
Eu acho que estava em algum lugar de onde via búfalos caminharem. Há muitos deles pelos ghats. Eu fico surpresa que as pessoas andem por aí e vivam suas vidas normalmente, como se isso não fosse extraordinário: a existência dos búfalos.
Seus negros pêlos brilham a ponto de quase cegar. E o brilho torna-se mais evidente por conta das formas angulosas, de ossos pontudos que se sobressaem em meio ao corpo robusto.
- Búfalo também é sagrado? - perguntei outro dia a alguém - Ele conta como vaca?
Búfalos são búfalos e vacas são vacas. Acho que foi isso que me responderam, não me lembro. Eu sei que são seres meditativos e solares e que parecem nada mais fazer, senão serem belos.
Existir em beleza já é ser sagrado. É claro que são.
Mais difícil é enxergar a sacralidade dos sapos e das galinhas: eis a sabedoria que cabe aos iniciados. Aqueles que sabem ver deus na matéria crua do mundo.
De repente me espanto: Por que o homem criou Deus à sua imagem e semelhança, se tinha a referência dos búfalos em pronta perfeição? Homem é bicho que não entendo muito. Criou também o relógio, sem saber que o tempo não cabe.
E nesse tempo indomável eu passo a tarde vivendo búfalos porque me perco um pouco do mundo dos homens. Talvez eu também não caiba tanto. Depois olho o relógio e tenho que caber. Corro para chegar a tempo ao concerto no terraço. Mais uma vez, não consegui almoçar - nem recitar meus mantras.
- Mas como você não teve tempo? O que você fez durante o dia inteiro?
Sei lá. Fui búfalo. Mas quem compreenderá?
Já no concerto, misturo-me a todas aquelas pessoas de tantas partes do mundo e quase me torno gente de novo. O amigo toca uma raga ao violino, e eu já nem percebo o quão deslocada eu sou.
Até que um macaco me denuncia, puxando minha blusa. Outro se junta a ele e agarra minha perna. Começo a gritar e eles não me soltam. Pulo de onde estou sentada, sentindo-me visível demais, diante das pessoas que olham, mal entendendo o que aconteceu, tão rápido fora o ataque.
Sento-me em outro canto, mais protegido, e quero chorar. Mas não choro, para evitar estardalhaço.
Hoje sou mais búfalo do que gente. Mas fico aliviada por ninguém ter percebido meu segredo.
Apesar da denúncia dos macacos.

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