domingo, 19 de abril de 2015

25 de fevereiro

Coloquei o álbum de fotos dentro da mochila, para caso desse tempo de andar até o lado de lá. Eram as fotos da família que, poucas semanas atrás, tão bem me recebera em sua casa. Queria visitá-los e entregar-lhes o registro que fiz, como forma de agradecimento. Mas tempo não deu. Aliás, tempo apenas me tira. Fico imaginando que no final de minha vida algum deus brincalhão dar-me-á anos a mais, explicando: “É o tempo que lhe roubei, de brincadeira”.
Hoje acordei angustiada. É que os minutos me somem e eu não sei ser tantas quanto gostaria. Então eu passo o dia falando com viajantes, que, afinal, é disso mesmo que se trata meu trabalho. Mas aí eu lamento perder o contato com a população local e quero ir lá aonde os turistas não estão. Depois eu vou até lá e fico com peso na consciência por não estar estudando. E quando fico em casa lendo, penso que estou perdendo o sol. E há as aulas de yoga, que larguei para não perder horas preciosas de vida em Varanasi. E também a meditação diária, que às vezes perco porque já estou demais meditativa e existir me toma demasiadas horas de não-pensamento. E há os lugares que quero visitar. E há aqui, exatamente aqui, onde quero desesperadamente ficar.
Porque Varanasi é tanto, eu também quero tanto. E ter acordado tarde me encheu de angustiada agitação. Nem era tão tarde assim, quase dez da manhã, mas já era como ser soterrada por quilos de areia da ampulheta. Quando saí para comer, era hora de almoçar. Pulei o café da manhã – está certo, comera frutas em casa – e pedi malai kofta com arroz branco. Pela primeira vez, rejeitei o chá de gengibre com limão. Estava com calor. E tinha, também, esse fogo. E esse chamado, que implorava que eu fosse logo à rua e que eu vivesse, vivesse tudo.
Pois peguei uma garrafa d’água e saí andando apressadamente em direção a uma vida que eu lamentava não serem muitas, infinitas vidas. Passei pelo menor dos ghats de cremação, onde os corpos ardiam ao som de uma bandinha que tocava, enquanto os vivos dançavam loucamente, tentando se divertir. Sentei-me no meu cantinho de meditação com as devidas tarefas: escrever, ler, recitar mantras. Quando acabei, ainda era cedo, mas pensei em jantar em um restaurante no último ghat, apenas pela vista e pela caminhada. Cheguei ao terraço do prédio, onde ficava o restaurante, e vi um sol que ameaçava se pôr, alaranjado, entre as nuvens. “Paratha agora não é possível. Sanduíche agora não é possível. Agora, só torrada”, dizia o garçom. Desisti de comer e pedi apenas um chai. Em realidade eu nem estava com fome e não precisava de nada, além de um fim de tarde tranqüilo, para organizar as ideias.
O que eu queria? Tudo. Do que eu precisava? De um plano para torná-lo possível, o tudo.
Sartre dizia que a angústia é conseqüência da liberdade. Porque somos livres e dessa matéria somos feitos, somos também angustiados. Não da angústia paralisante e negativa, mas da angústia profunda de ter, diante de si, todas as possibilidades do mundo.
Aceitei a liberdade e sua angústia.
Mas decidi: amanhã acordo mais cedo.

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