domingo, 19 de abril de 2015

4 de março

Na frente, vi passar o pai com uma das crianças. Quando fui exclamar que ela era linda, vi a mãe, com outra criança enrolada. Estavam todos vestidos em tecidos crus e eram uma família tão, tão bonita.
Fiquei com essa imagem na cabeça e, como decidira que hoje era o dia de fazer compras, saí para procurar roupas em tecidos e cores naturais. Pela primeira vez no Nepal, entrei nas lojinhas, perguntei os preços. Devo estar mal acostumada com a Índia, porque achei tudo bem caro. Saí perguntando por tecidos crus, mas, com exceção dos cashmeres, não havia nada do tipo.
- Você sabe onde Gandhi fazia compras? - eu me imaginava perguntando nas lojas e ria sozinha da bobeira.
Depois comprei uma bata qualquer para usar no Holi. Eu sempre quis participar dessa celebração: a festa das cores. Comemorei quando me dei conta de que estaria na Índia nesse período, até começar a ouvir advertências de que Varanasi não era uma cidade segura para mulheres nesse período.
- Não saia durante a manhã, pois os homens estarão todos bêbados. À tarde você pode sair, mas só se estiver acompanhada por um grupo de confiança. Além do mais, se alguém te faz uma maldade, você fica sem recursos, já que estarão todos pintados e irreconhecíveis. - foi o que alguns indianos me alertaram.
Ouvi dizer que havia outras cidades indianas onde se podia celebrar tranquilamente o Holi. Mas o melhor foi saber que no Nepal também se comemora, de forma mais segura e suave.
- Aqui as pessoas são mais tranquilas e as mulheres andam com mais liberdade. Em cidades maiores da Índia também é assim ou é como Varanasi? - me perguntou o amigo.
- Nem Varanasi é como Varanasi. - respondo - Quando eu ando pela Universidade, é tão diferente, com as mocinhas tranquilas circulando pelo campus. É que é como se a gente morasse no cais e só convivesse com os estivadores. A área dos ghats é mais bruta, sabe?
Felizes dos que enxergamos delicadeza até no bruto.
- Vamos passar o Holi em Bakhtapur - ele decide.
Eu vejo as fotos do local e gosto da ideia. Durante o almoço, fazemos planos para os próximos dias. Entre palavras e garfadas eu desabafo:
- Poxa, eu engordei muito nos últimos meses!
Ele responde à maneira portuguesa:
- Oh pá, e ainda quer sobremesa!
Rio da espontaneidade da resposta, mas quero. Sou taurina e faço questão de entrada, prato principal, sobremesa e chá. Por isso à noite fico tão feliz ao encontrar um restaurante simples fora da área turística. Eles trazem sopinha e um copo d'água. A comida vem na medida, mas eu também cobiço a refeição dos vizinhos de mesa. Descubro que a "tukhpa" deles é o que os chineses chamam de huantuan, que eu tanto sei apreciar.
- Esse restaurante já ganhou meu coração - desabafo - mas se nesse momento me trouxerem uma bolinha de sorvete, ganham meu amor verdadeiro e eterno.
Não trazem. Então eu mesma compro um chocolate, antes de entrar no cinema para assistir a um filme indiano. Em Varanasi sempre tive vontade de ir ao cinema e nunca fui. Aqui, me espantei com as poltronas confortáveis e com o garçom, que serve copinhos de suco e amendoim durante o filme. E fiquei feliz por ver que todos os filmes em cartaz são nepalenses ou indianos: eles consomem o que produzem.
No meio do filme, que era meio dramático e meio de ação, vimos dois rapazes a andar pelos corredores, um de cada lado. Olhamos tensos, como se pudéssemos ser acuados a qualquer momento. Depois tivemos crises de risos, ao nos darmos conta do pensamento igual.
Por um milésimo de medo, estivéramos dentro do filme.
Em algum filme estamos. Às vezes cruzamos o filme dos outros, às vezes fazemos figuração. Mudamos de cenário e de figurino e num dia qualquer decidimos nos vestir de tecidos crus para copiar outros personagens. Haverá alguém a escrever o roteiro? Espero que não. E, porque espero, acredito que não. Ainda assim continuo desejando que o acaso, caso seja o acaso o diretor desse filme, não esqueça a sobremesa.
Por um desenrolar mais doce.

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