domingo, 19 de abril de 2015

A ideia me ocorrera há uns dois dias, assim na rua, de repente:
- Por que não?
Andam descalços a maioria dos indianos por aqui. Eu me espantava, porque a primeira coisa que chama atenção em Varanasi é que os chãos são sujos. Em dias de chuva, especialmente, são completamente tomados por uma mistura de lixo, lama, excrementos de vacas e de cachorros. Em dias assim eu caminhava me equilibrando nos chinelos, escolhendo com todo cuidado onde pisar. E ainda assim molhando os pés.
Agora, com dias ensolarados, as ruas tornam-se convidativas. E eu admito que mesmo na lama invejava a liberdade daqueles que, descalços, não se importavam. Por isso me veio a vontade: uma libertação.
Eu sempre gostei de caminhar descalça e de sentir o solo sob meus pés. Gosto das pedras frias. E gosto das pedras quentes. E, sobretudo, não gosto de nada que me tire a sensibilidade e que, de uma maneira ou de outra, me anestesie perante o mundo.
- Botas são tanques de guerra - eu já pensara e escrevera em um texto, tempos atrás. Porque tenho o costume de fazer trilhas descalça e porque percebera que, calçada, podia pisar em tudo - nas plantinhas e nos galhos - sem sentir. E que esse pisar sem também se afetar é a própria lógica do Poder.
Eu sempre quis, de alguma forma, esse mundo: de pessoas descalças. Essas que se sujam, se ferem e são tocadas por tudo o que tocam.
Por tudo isso, ou talvez apenas pelo tato da pedra sob os pés, ocorrera-me a ideia de que dia desses livrar-me-ia dos chinelos. E seria livre como eles, os indianos.
Pois foi hoje que aconteceu. Eu andava em direção a um lugar qualquer e, no meio do caminho, decidi:
- Chega disso.
Guardei os chinelos na mochila e segui de pés descalços.
É uma sensação boa, como se subitamente eu ganhasse um sentido a mais. E é, realmente é libertador.
- Agora você vai pisar em um monte de xixi - me disse meu amigo, quando resolvi ir ao banheiro do restaurante.
Mas não se pode mergulhar pela metade. Quando se assume o chão, é com a dor e a delícia, diria Caetano.
E quando, na saída do restaurante, dei-me conta de que não precisava me calçar, como sempre fazia ao descer do tatame, exclamei:
- Olha que delícia, agora sou uma pessoa descalça!
A gente não vive a beleza das possibilidades sem se sujar um pouquinho.

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