domingo, 19 de abril de 2015

Pelo menos desde que saí do Brasil eu não fazia mais isso: andar no mato. Fazia falta? Há faltas que a gente só sente quando preenche. E eu também estive sempre tão distraída com as pessoas, os sabores, as tardes que, já na cidade, gastavam-se como água. Então não. Fazer uma trilha não me fez falta. Mas fez quando eu soube. Ou soube quando fiz.
Foi hoje. Fomos ao Parque Nacional Shivapuri. Chegamos de moto até o mosteiro onde vivem monjas pequenas e doces. Pedimos para uma delas, velhinha, guardar nossos capacetes. Meu amigo explicou com mímica: dormiríamos lá em cima e voltaríamos no dia seguinte. Havíamos planejado passar a noite em um abrigo no alto, onde vivem os sadhus.
A trilha começou com longas escadas de degraus estreitos. Eu, levemente irritada:
- Não quero escadas, quero trilha de verdade: terra, pedra ou o que for.
Agrada-me a imprevisibilidade dos caminhos e a atividade meditativa de se andar prestando atenção absoluta em cada passo, de decidir em que pedra pisar ou onde pousar. Depois das escadas, pois, vieram as trilhas, essas que gosto de percorrer. Ao redor, árvores cheias de musgo, outras com troncos ocos. Eu queria entrar dentro de todas.
- Já pensou encontrarmos um tigre?
Pensamos. Sem saber se desejávamos ou não aquele encontro. Mas a ideia soava fascinante.
De repente.
Um rosnado alto, altíssimo.
Nós dois paramos e nos olhamos. Era chegado o momento? Olhares atentos, passos lentos. Vimos um vulto. Era grande, o bicho.
- Acho que não é um tigre, tem um rabo diferente. - observei.
Aproximamo-nos mais. Um boi. Terrivelmente mal humorado, mas um boi. E isso foi o mais perto que já chegamos de ver um tigre. Era decepcionante, mas também um alívio.
Enquanto subíamos eu lhe contava da Pedra da Gávea. De como era bom ter relação com um lugar. Conhecer a vegetação em seus ciclos, saber quando as plantas floresciam e saber o nome de cada pedacinho dali, mesmo que os nomes tenham sido inventados por você. E que você tenha nomeado a pedra pontuda lá no topo de "Pedra da Lian". E ele me falava de como as montanhas na Suíça, onde morava, eram diferentes. De como, àquela altitude, já não havia aquela abundância de vegetação, da qual nos cercávamos naquele instante. E que o que tínhamos ali era um privilégio. Era.
O fato é que chegamos ao abrigo dos sadhus bem antes do que prevíamos. Encontramos esse sadhu barbudo e cabeludo, como são todos eles. Ficamos um tempinho trocando palavras e perguntamos se poderíamos passar a noite ali. E, como era cedo, resolvemos seguir para o Shivapuri Peak, o ponto mais alto, de onde veríamos as montanhas nevadas ao fundo.
Andamos de um ponto a outro, fizemos nosso piquenique, subimos em árvores, tomamos sol no rosto e continuava sendo cedo. Então sugeri voltarmos no mesmo dia. Meu amigo acatou a ideia e, depois de tirarmos muitas fotos das montanhas e de tomarmos um chá com o sadhu, descemos correndo, para aquecer o corpo naquela floresta que já esfriava.
Era bom sentir o corpo vivo, mesmo que o coração acelerasse e a cabeça tonteasse por causa da altitude. Era bom ver as cores que se formavam à medida que o sol descia e jogava seu amarelo sobre as árvores. E era bom inventar brincadeiras bobas, mas de uma verdade que a seriedade não tem, como entrar nos buracos das árvores para fazer nosso agradecimento à floresta.
E, enquanto corria naquela trilha, lembrei de um dos adjetivos que mais me agradam, quando alguém se refere a mim. Lembrei da exclamação de uma amiga, na Pedra da Gávea: "Você realmente é a Pocahontas, você é completamente selvagem!" E achei tão bonito ser chamada de selvagem.
São vaidades bobas:
- Deve ser desagradável ser morto por um tigre. Mas, se é pra morrer hoje, que seja por um tigre. - eu dissera a meu amigo mais cedo.
É que a floresta é tão bela e imensa e poderosa que é envaidecedor fazer parte um pouquinho, seja sendo selvagem ou atacada por um tigre. Ou apenas humildemente voltando para casa com um arranhão sob o olho. Pequeno, mas que já faz com que eu me sinta mais bonita frente ao espelho.
É que eu lembro que entro nos buracos das árvores. Mas que elas também, as árvores, entram inevitavelmente em mim.

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